quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Fleurs et la mort

Abriu os olhos vagarosamente e lhe ardeu a luz que vinha das várias lâmpadas por todos os lados. No teto. Não se lembrava de muito antes disso. Era como se alguém fizesse força contrária todas as vezes em que ela tentava levantar os olhos muito alto, no esforço de reconhecer aquele teto nada familiar. Mas o assombro de se perceber em local desconhecido a fez resistir ao incômodo de tantos estímulos palpitando o astigmatismo. Sentia seus pés gelados mesmo sem sentir o frio. Seus pés, nariz e dedos das mãos sempre estavam gelados. Uma leve força e percebeu que o seu pescoço doía, entendeu que seria assim com qualquer outra parte do corpo que tentasse mover. Enxergou nublado o roxo em volta das veias do braço onde a agulha deitava imóvel, canalizando o soro até dentro dela. Estranhou o machucado, já que os médicos nunca tiveram problemas em encontrar sua veia. Olhou mais além e descobriu o jeans antigo que, provavelmente, alguém teria posto nela, já que não se recordava de coisa alguma. Viu os pés nus e imaginou-os mais gelados do que o normal, por isso. Passada a tontura inicial, olhou em volta do quarto. Tinha um vaso de flores amarelas lá longe, perto da porta, em cima de um dos balcões ou sabe-se lá o nome daquilo. Flores, flores. Só agora, percebendo o contraste do amarelo, lhe ocorreu o efeito enjoativo que a cor do ambiente causava-a. Tudo muito branco e toda aquela claridade já começava a lhe trazer pontadas mais fortes. Flores lembravam-na alguma coisa... De repente, ela viu as flores, só que vermelhas, na escrivaninha do apartamento. Recordou-se das letras emboladas na carta, no papel; mas não era seu caderno de sempre, era uma folha solta. Ela escrevia enquanto as flores se misturavam ao texto. De repente o barulho e as flores se espalhavam pelo chão, o jarro quebrando e as palavras jorrando. Pílulas e comprimidos e porque ela tinha feito aquilo? Não se lembra do impulso antes disso, que deve ter sido dos fortes pra convencê-la assim; se lembra apenas a partir do momento em que já havia se arrependido; do momento em que a dor a dilacerou e já era tarde. Porque ela tinha feito aquilo? Quem havia levado-a àquele lugar? Os pensamentos se dividiam entre as dúvidas, a lembrança e a dor de cabeça. Ou seria tudo somente efeito da medicação? E qual medicação: a de melhora ou primeira com outro objetivo? A enxaqueca era mais intensamente sentida a cada pulsar, enquanto seus pensamentos iam sendo interrompidos por vozes e passos vindos do corredor, que ficavam ambos mais fortes na medida em que se aproximavam da porta branca do quarto branco. O girar da maçaneta funcionou como um click, fazendo-a despertar para, quem sabe, o fim do mistério. Viu uma mulher de branco entrando pela porta  provavelmente a enfermeira – acompanhada de um rapaz alto de olhos castanhos, fundos e penetrantes, que se fixaram prontamente nela. A enfermeira balbuciou umas palavras rápidas de acomodação ao rapaz, deixando o quarto. Do lado de fora, pelo vidro da janela, conseguia ver uma mulher de meia idade, através de umas brechas da cortina branca de plástico. Tinha uma feição preocupada e avermelhada, como de quem tivesse chorado recentemente. O rapaz se aproximou da cama receoso, segurando a mão dela, levando-a até ele, aconchegando-a, e só assim ela se deu conta de como seus reflexos e sua sensibilidade estavam comprometidos. Os círculos castanhos continuavam a olhá-la fixamente e ela poderia até arriscar que percebia certa expressão de afago, se não estivesse tão dopada. Agora o rapaz desconhecido, e ao mesmo tempo familiar, parecia mexer os lábios de forma dócil e pacífica, com o mesmo olhar carinhoso, intacto, imóvel. Só parecia, sem certeza, vez que ela só conseguia captar umas míseras palavras soltas que ele a direcionava, e ainda assim, com um pouco de eco flutuando até atingir as paredes pálidas e voltar até ela. Ou seria o eco dentro da sua cabeça, apenas? Ele falava algo sobre tudo ficar bem – palavras que combinavam com o seu olhar do início, que agora parecia um tanto afetado – e a julgar pelo seu tom de voz, ela percebeu a forma como a fala dele parecia íntima. Havia uma sensação estranha, como se alguém contasse uma história ocultando fatos, como se faltasse um pedaço de alguma coisa. Ele citou uma carta em sua fala e logo em seguida vieram questionamentos aos quais ela não conseguia sequer acompanhar mentalmente. As perguntas não tinham tom de fúria, nem de ameaça, muito menos de julgamento, o que fez com que ela tivesse certeza agora de que deveria se lembrar daquele olhar e daquele tom protetor naquela voz; mas, ainda assim, não fazia idéia alguma. Enquanto o rapaz puxava do bolso de trás da calça um pedaço amassado de papel, sua cabeça fazia zigue-zague na medida em que entendia cada vez menos tal situação. Ele passou o olho por cima daquelas palavras manchadas através do papel, como dava para notar, lendo por um tempo em pensamento. “Você não se lembra mesmo de nada?” Ele perguntou, com aquele mesmo olhar penetrante e íntimo e agora um tanto dolorido. Não esperou por resposta, como se pudesse prever alguma, voltando os olhos para o pedaço de papel que, agora seco, não negava que havia se umedecido há pouco tempo atrás. Se pôs a ler em voz alta com certo esforço, como que catando as poucas palavras daquela longa carta que não haviam se embolado acidentalmente por entre a tinta da caneta misturada à água do jarro de flores; a garota se esforça tentando afastar o efeito sonífero da medicação para que pudesse entender bem o que agora poderia vir a ser, novamente, quem sabe, o fim do mistério: “Não, eu não quero mesmo me matar. Com a maioria dos suicidas é assim: comigo não seria diferente. Eu quero mesmo é pôr um fim à essa dor e às vozes na minha cabeça.” [...]linhas borradas. “Vou fazer isso, está decidido. Vou fazer mais pela dúvida de fazê-lo ou não do que por vontade pulsando forte por dentro.” Olhou subitamente para ela, sem demorar o olhar, como se tudo doesse demais para um contato visual agora, para procura de verdades; ou como pra checar se ela o acompanhava. E sim, ela o fazia. “... E no geral, é mesmo assim: ninguém tem vontade de morrer. As pessoas têm é vontade de vida, de mudança, de melhora, de amor. No meu caso, de um pouco de atenção. De uma pitada de drama na minha vida murcha e cotidiana. De encontro comigo mesma, seja lá o que isso signifique. Mas não quero que pensem que faço isso para chamar a atenção de ningué...” [...] “Acontece que quero gritar e, impedida por certas mordaças invisíveis ao olho humano, fazer mal a mim mesma é a maneira que encontro de tornar externa a forma como estou por dentro. Quem sabe, talvez assim, alguém me ouça.” [...]

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Eu escolho ficar

Ah, como é cedo! É sempre muito cedo ou tarde demais. Como eu quero você e já não quero nada. Como tenho medo, como fujo, como quero você... Como, assustada, eu quis soltar sua mão e correr depressa pra longe, de volta pra minha solidão segura, pra minha liberdade vazia. E ainda assim fiquei, e tenho ficado. Tenho ficado e não esperado nada e esperado qualquer coisa e me segurado ao máximo pra não esperar mais do que o que eu posso.
Existe uma porção de coisas que eu queria te perguntar. Só acho que no fundo não quero realmente saber as respostas. Então empurro tudo de volta pra dentro de mim. Eu não quero falar, eu não quero estragar esse momento aqui. Eu não quero desabafar, não quero colocar os meus problemas pra fora nem muito menos trazer o drama todo à tona, porque ao seu lado eu tenho os únicos momentos do meu dia em que eu me esqueço de como estou caindo aos pedaços. Sim, caindo. Não importa o que aconteça nem como aconteça. Não importa o que você faça por mim: eu sempre vou estar assim. Aos pedaços. Porque isso é o que eu sou. Então deixa esse silêncio em volta de nós correr mais solto, porque, amor, nossos olhos dizem melhor do que qualquer palavra que a gente possa usar, do que qualquer frase clichê. Silêncio. Deixa no ar só o cheiro de você. Eu já vivi o suficiente pra saber que palavras não garantem nada, só complicam tudo. Quem quer ouvir demais acaba se machucando e, querido, eu não sei o que eu quero, mas dor eu não quero mais.
É que você é a minha doce surpresa. Você é como um presente posto às escuras à minha porta. Você é o presente que eu quero desenlaçar com carinho, sem pressa, que é pra não perder a graça. Um presente sem passado, sem futuro: só presente. Nenhum tempo importa além do agora em que a sua pele encosta a minha. Vou deixar que seus mistérios permaneçam intocáveis que é para o meu medo permanecer sempre vivo e que, assim, no meio de tanta coisa morta em mim, eu guarde pelo menos algo vivo pra você.
Ah, amor. Não pensa que eu não me importei. É que, como toda surpresa que pode ser boa ou ruim, como todo presente que a gente pode gostar e depois não gostar, ou gostar e depois quebrar, e depois deixar, eu tenho que esperar qualquer coisa que possa estar por vir. Coisa que poderia ser o que eu quero, que eu não sei o que é, ou que poderia ser o que não quero, que sei bem.
A vida é muito mais fácil quando se vive como eu vivia, sem nada a perder. Mas eu vou ficar... Eu escolho ficar pelo simples fato de que eu prefiro a dificuldade de você. 

sábado, 17 de setembro de 2011

Limítrofe

Você sabe como é estar no alto e cair de repente, estar lá embaixo e então voltar ao topo, chegar ao topo e deslizar logo em seguida, como num ciclo vicioso, repetitivo, mudando involuntariamente de uma cena à outra num curto espaço de tempo, o tempo inteiro? Viver cara a cara com o exagero e experimentar a mais profunda intensidade em cada sentir: o céu na mais simples euforia, o fundo do poço em cada mínimo estado de desânimo. Você sabe como é viver em constante dor, tão dilacerante quanto garras afiadas ao pressionar uma laringe, até sufocar? Assistir os fantasmas do passado a voltar todos os dias, as vozes sussurrando dentro de sua cabeça verdades que você ora aceita, ora confronta fervorosamente. A raiva grita em seu desespero, abafando todos os outros sentimentos que relutam entre aparecer e permanecer escondidos dentro de você, tudo ao mesmo tempo. Conhece aquela sensação de não saber se tudo é mesmo real ou se não passa de um sonho? Consegue se imaginar vivendo com ela a todo instante latejando dentro da sua cabeça? A crítica é rigorosa, constante, involuntária. O ódio e o desagrado são por tudo e todos, e nunca, em hipótese alguma, se experimenta mais de meio instante de satisfação. A sensação de vazio nunca some, todas as coisas levam ao tédio e é aqui que entra a tão marcante tendência ao drama e o gosto, novamente não proposital, por brigas e por qualquer coisa que leve à tentativa de fugir da rotina.
Não, você não sabe como é. Você não conhece esse mundo onde todas as emoções têm mais força, onde tudo é sentido com intensidade perturbadora e tudo só pode ser bem ou mal, oito ou oitenta, céu ou inferno, tudo ou nada, amor ou ódio, sem meios-termos. Preto ou branco, nunca cinza. Desejo, necessidade, urgência. Apatia, desprezo, rispidez. Quem saberia lidar com tamanha ambiguidade sem sentir como se estivesse prestes a enlouquecer? Você não sabe como é viver uma vida caminhando por um fio: basta um passo em falso, um cálculo mal feito.
Quanta doença você acha que se esconde por detrás dessa máscara de boneca? Aposto que você não faz ideia de como dói ser eu. Você não faz ideia de como é ser levado o tempo inteiro à imagem dos seus pezinhos flutuando no ar e um cordão suavemente amarrado ao seu pescoço. Ou pílulas e mais pílulas e mais uma garrafa de vodka pra funcionar como chave do armário imaginário, onde se pode trancar os monstros.
Quantos demônios você acha que podem se esconder por trás do som de uma doce voz?
Tão jovem para um diagnóstico dessa gravidade. “Infelizmente, não há cura, o que há é controle, portanto é importante que não se esqueça dos horários dos antidepressivos e que continuemos a nos ver”. Desse jeito, como se tudo fosse natural, como se nada daquilo significasse: você está condenada a manipulação por medicação controlada e a uma sala de terapia pro resto da vida, isso sem considerar suicídio. Nada de automutilação e, lembrando, nem tente relacionamentos amorosos, jamais serão saudáveis ou duradouros. Você recebe a pior notícia de todas, as atenções estão voltadas a você e, no minuto seguinte, “vejo você na próxima terça”, você é só mais um paciente e é isso, a vida continua. a
É como um câncer, grave e para toda a vida. Só que um câncer escondido dentro da sua cabeça, um câncer que ninguém vê, silencioso e perturbador e que talvez te consuma e te apodreça por dentro. Talvez te domine até o ponto em que você olhará em volta e se verá sozinho, pela doença ter afastado todos que um dia te amaram e tentaram se manter perto de você. Você sempre vai se lembrar de como é um veneno ambulante pronto para ser espalhado, um desastre total, pura sequela  um pote cheio de medos e âncoras e neuroses e psicoses; uma máquina de dor, pra sempre instável e manipuladora, paranoica, impulsiva, extremista, histérica, vazia, carente e assustada. E só. Completamente só. Porque, vamos encarar os fatos, garota: ninguém ama uma borderline.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Janeiro




Já faz quase um ano, mas parece ter sido ontem, vez que cada detalhe permanece vivo em minha mente, e cada cor é quente, tão quente quanto aquele dia de Janeiro. Eu nunca gostei muito de Janeiro. Não tenho uma explicação para isso, eu geralmente gosto ou desgosto de alguma coisa simplesmente pela forma como o nome dessa coisa soa aos meus ouvidos. E eu não gosto de Janeiro. Ou pelo menos não gostava, até aquela tarde quente. Mas se a minha, até então, antipatia por Janeiro precisa de alguma lógica, assim como todas as outras coisas chatas do mundo, então tudo bem. Janeiro foi o mês seguinte à mudança da minha melhor amiga para outro país; foi o primeiro mês em que estive completamente sozinha depois de muito tempo, e eu sabia que levaria muito para me recuperar da falta que ela me faria. Eu me sentia triste quase todos os dias, e só me distraia e esquecia um pouco a saudade quando me afundava perdida dentro de um livro. Eu não esperava muito depois daquele Dezembro murcho. Nada de novas amizades, novos lugares, novos interesses; nada de novidade. A vida continuaria igual, todo santo dia, e a única espera, a única ansiedade e os únicos sorrisos viriam de imaginar nós duas nos reencontrando de novo, mesmo sabendo que isso poderia levar anos. Eu não esperava nada; e depois ouvi dizer que as melhores coisas vêm desse jeito, mesmo. E então, você. Aliás, não parece que foi ontem, me permita essa correção. Parece mais que foi um sonho, apesar de toda a nitidez desse filme que passa e repassa girando na minha cabeça. Um sonho, o mais bonito de todos. Quando cheguei ao meu esconderijo mágico, o máximo que esperava era a sorte de encontrar um livro muito bom, daqueles que têm o poder de me transportar a outro lugar, como que num estalar de dedos, e de me prender lá por horas, como se eu não pudesse achar o caminho de volta, e nem quisesse. Esses livros que só acontecem vez ou outra na vida, mesmo na vida de uma garota como eu, que praticamente mora na casa dos livros. Aquelas escadas nunca pareceram tão longas, acho que por causa do calor, eu me cansava três vezes mais do que o normal a cada degrau e a cada andar que tentava explorar. Eu não me lembro do momento exato em que o meu olhar, naturalmente curioso, te encontrou. Mas eu me lembro das cadeiras e mesas vazias, eu me lembro das cores: avermelhadas, amarronzadas e esverdeadas, empilhadas como fitinhas coloridas nas estantes; eu me lembro daquele último andar quase nunca visitado por mim, e nem pelos outros leitores; chão e teto de madeira e antes só o som dos meus passos baixinho ecoando pela sala vazia, e você. Eu me lembro de você. Sozinho, concentrado, sem me notar; me inclinei de leve lutando contra o pouquinho de miopia para enxergar o que te fazia tão absorto. Scott Fitzgerald. Eu queria um jeito de chamar sua atenção, mas achei indelicado interromper; ainda mais pelo fato de eu não entender nada de Fitzgerald – desculpe, mas eu só leio o que me chama – e sobre qual outro assunto eu poderia falar se não sobre a sua leitura? Seus olhos se levantaram até mim, me percebendo, atrapalhando o meu transe, ou me poupando estratégia de tentar desviar sua atenção. Já fazia algum tempo que eu não esperava nada. Sua voz funcionou como um clique e foi como se tudo o que dormisse há muito tempo dentro de mim tivesse despertado em conjunto. Cada gesto seu me chamava pra mais perto. Cada nova descoberta sobre o outro soava mais harmônica. Tinha tudo para ser só mais um encontro cotidiano, mas não era. Tinha tudo para que eu não tivesse ido àquele último andar, como acontecia a cada visita, mas eu fui. Tinha tudo para eu ter saído de casa uns dez minutos depois, você meia hora antes, e nunca teríamos nos cruzado. Tinha tudo pra você não ter trocado Fitzgerald por uma conversa qualquer com uma estranha curiosa, mas você trocou. E então alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que eu não sei explicar e nem teoria alguma dentro de todos aqueles volumes enfileirados saberiam. De repente eu me senti tão enorme por dentro quanto aquela biblioteca, mesmo com aquele salão central e aquelas escadas imensas imitando braços por todos os lados e aquelas inúmeras salas que dava para se perder dentro. Aquele labirinto lá fora, aquela sala vazia, eu, você, e todas as histórias do mundo ao nosso redor. A sua voz, o seu sorriso e, eu ainda não sabia, mas aquele seria o melhor dia da minha vida.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Onde eu guardo você




Eu não sei com qual endereço devo preencher os quadradinhos no verso do envelope, nem quais palavras eu devo usar para escrever a essa nova pessoa que você deve ter se tornado, provavelmente tão estranho a mim. E nada me importa porque o que eu sei é que essa carta por você jamais será lida, exatamente como as outras mais antigas que envelhecem no fundo da gaveta cor de marfim. Se fosse essa uma de nossas velhas conversas, nessa parte eu deveria perguntar como você está, como vãos os seus pais, seus planos, e até mesmo como anda seu coração. Aí você responderia qualquer coisa sem muita verdade, como fazem os conhecidos que se esbarram em qualquer lugar e se cumprimentam com aquela certa pressa cotidiana. Você faria todas as minhas perguntas de volta a mim, como que por gentileza e educação. Então eu procuraria em meio ao meu arquivo de coisas-entediantes-do-dia-a-dia algo que soasse feliz ou, no mínimo, interessante pra te contar, sem muita intensidade, só para dar continuidade a nossa conversa. Mas sendo essa uma carta e não uma conversa, eu deveria escrever sobre mim, escrever até cansar, te contar coisas novas, coisas bonitas da minha nova vida, da qual você se tornou tão distante. Eu teria de inventar tudo, como fazem os ex amantes, inventar alegrias que na verdade não existem e que só existiam quando os dois ainda estavam juntos. Inventar e nunca deixar transparecer a tristeza causada pela falta que um faz ao outro. Eu até gosto dessa palavra: inventar. Mas deixo isso pros meus momentos de escritora mirabolante que penso que sou, porque com você, eu nunca precisei de nada disso. Tendo de escrever sobre mim, não sei sobre o que escreveria. Sobre tristeza já falei em outras cartas. Sobre amargura, também. Sobre amor, sobre falta, sobre saudade e todas as coisas que já nem valem mais à pena serem ditas – porque não há mais você para ouvir – já escrevi. Eu já cansei um pouco de ser tão melosa, já cansei de sentir tanto assim por você; dos pensamentos incessantes, dos relatos em papel; e já cansei, principalmente, das várias últimas lágrimas que chorei prometendo a mim mesma que seriam as últimas, e das inúmeras folhas de papel que gastei falando sobre você, também jurando serem as últimas. Se eu soubesse seu endereço, se eu soubesse quem é esse novo você, se eu soubesse que esse novo você ainda se interessaria pelas minhas conversas fiadas e pelos meus dramas sem fim, eu contaria a esse novo alguém como tenho me afundado rápido demais. Eu perguntaria sem mais rodeios: quer saber a verdade? Então aqui vai: eu tenho me envenenado pouco a pouco pra tentar matar você dentro de mim. O que é confuso, porque você é a melhor coisa que já me aconteceu. E eu ainda te amo. Mas eu também odeio isso. Sim, sim, eu confessaria que me enganei quando pensei que o tempo poderia tirar você de mim. Perdi as contas de quantos dias passei esperando somente por aquele dia em que eu acordaria pela manhã, abriria meus olhos e já não me lembraria de você. Os dias que fiquei só imaginando e esperando que a ciência inventasse algum tipo de nova droga que pudesse apagar nossas memórias. Os dias que perdi me enganando e tentando enganar a todo mundo. Agora eu vejo que não há forma de te tirar de mim, e que também não há motivo para desejar tal coisa. Eu achei que o nosso pra sempre havia terminado no momento em que seguimos caminhos diferentes, mas agora eu vejo que o pra sempre não se referia a andarmos juntos a todo instante, mas sim a essa lembrança, essa presença aqui dentro de mim, essas memórias e tudo, tudo, tudo que você me deu. Tudo é pra sempre. Se você quisesse ainda ouvir, era o que eu te diria. Se eu ainda tivesse o seu endereço, se eu ainda soubesse seu nome, se nós não tivéssemos perdido a trilha de volta pelos caminhos diferentes aos quais seguimos, eu te enviaria essa carta, eu te diria só essa última coisa, mesmo sabendo que quando se trata de você, a última lágrima nunca é última, nem a última vez, nem o último pedaço de papel: eu queria que você soubesse que o único lugar bonito que sobrou dentro de mim, é onde eu guardo você.

domingo, 17 de julho de 2011

Sem título

No telefone eu senti um tonzinho de ameaça: que horas você passa lá em casa? Quero conversar. Ai meu deus, conversar. Parece que a todo instante eu estou voltando no tempo, quando meu pai se sentava de frente pra mim e gastava horas em discursos entediantes pra me alertar de como garotinhos podiam ser malvados – mal sabendo ele que eu me tornaria a malvada da história –. Sentada na sua minúscula mesa de jantar, coberta com a toalha xadrez que a sua mãe comprou – sim, claro, porque ela não poderia sobreviver sem visitar e supervisionar seu apartamento todo santo final de semana – eu estou tranqüila, pernas cruzadas, olhando em direção à enorme janela de vidro que quase me permite enxergar os carros passando depressa lá embaixo. Eu adoro essa janela, e a visão dos outros prédios. Dá pra ver as pessoas em seus afazeres e isso era o que me distraia toda vez que eu deitava no seu sofá te esperando chegar da faculdade, sem ter nada de interessante pra fazer. Você me serve café na minha xícara velha – a que eu escolhi de lá de casa pra trazer e deixar aqui, porque de todas as outras, essa é a que menos gosto da cor –, sentando de frente pra mim, com um ar cansado, fingindo apreciar a mesma vista que eu somente na desculpa de fazer voltas até chegar ao que interessa –. Você me olha com aquela expressão de pedido de socorro, como que um sinal pra que eu pergunte: e então... você disse que queria conversar? Mas eu nem vou fazer isso. Por mim está ótimo em só sentar aqui e fingir que a vida é boa. O meu silêncio continua, salvo pelo tilintar do pires na xícara que agora eu agarro com as minhas duas mãos, pondo algo entre nós dois porque assim me dá a sensação de estar protegida. Eu queria falar sobre nós dois. Ai meu deus, eu já tinha passado por isso vezes suficientes para entender que “quero falar sobre nós dois” na verdade significa “preciso reclamar de você” – e agora vai começar o drama, sim porque vocês garotos também conseguem quando o querem –. Considerando as minhas outras experiências e o fato de que eu faço tudo direitinho, sem o incomodar muito – tipo sem crise de ciúmes, sem telefonemas incessantes, sem tantas cobranças etc e tal – eu podia prever o que estava por vir. Eu não sei, você é tão distante... às vezes parece que você não se importa... Era sempre o mesmo texto, exatamente igual. Se eu não ligar, você não liga... eu não sinto você aqui. Aí vem aquela pausa, como que me oferecendo uma chance de defesa, mas eu não tinha do que me defender. Não tinha e nem queria. Ele estava certo. Ficou me olhando fixamente, esperando reação, sem resposta. Sabe, eu não quero só o seu corpo, o seu rosto bonito ou só o seu cheiro no meu travesseiro. Eu quero alguém por inteiro, e não essa pessoa oca que eu enxergo quando olho pra você. O barulho do trânsito me distraia da voz dele, mesmo assim eu percebi que havia chegado o ponto da conversa onde o locutor fica meio emocional. É tudo tão mecânico... eu queria que você falasse como se sente, não sei, pelo menos de vez em quando, como as garotas normais. Esse é o problema. Sentir já é tão difícil: ele exige que eu sinta e que eu ainda por cima fale sobre isso! Eu não sabia o que responder. Eu até poderia tentar uma conversa produtiva, uma discussão de relacionamento, como fazem os casais normais, mas eu já estava cansada demais pra isso. E não era cansada por mais um longo dia de estudo e trabalho. Era cansada dessa coisa que todo mundo tem de me cobrar agir como gente normal. Eu olhei apática nos olhos dele, foi sem querer, eu queria tentar parecer me importar, mas achei mais fácil entornar o café que nem água, pra me ocupar, na esperança dele continuar a falar sem me exigir resposta, até que aquela sessão de tortura acabasse e eu pudesse ir pra casa, pro meu quarto, sozinha, que é como fico melhor. Silêncio do lado de lá da mesa. Silêncio do lado de cá. Como um jogo de ping-pong, só que nulo, sem pontos, ninguém marca nada. Eu começava a sentir um leve desconforto, apenas como resultado do grande desconforto dele. Porque por mim, eu sentia mesmo muito pouco. Do que você tem medo, ein? Porque você se defende tanto? Eu quis dizer que já fazia sessões de terapia, obrigada. Mas toda vez que alguém me pergunta do que eu tenho medo, é assim, eu desvio o olhar, é de tanta coisa! É de tudo. Ou sei lá, deve ser só de mim mesma. Fiquei encarando a xícara cor de salmon e o café com leite amarronzado: tudo sem graça, imitando a mim. Eu amo você, sabe. Mas é tudo tão difícil com você... Difícil mesmo é encontrar resposta em defesa de uma acusação que, você sabe, é correta. E mais difícil ainda é procurar por essa resposta quando nem se faz questão de usá-la. Tomei mais um gole da coisa sem graça, tentando evitar esse momento aqui: porque você não me deixa, então? De fato, você merece uma garota mais “mentalmente” saudável. Falei sem emoção, e por isso mesmo soou sincero, tão limpo que nem tinha na voz o sarcasmo de sempre nem nada. Levantou e foi até a cozinha, balançando a cabeça de um lado pro outro, negativamente, gesticulando implicitamente um “você não tem jeito, mesmo”. Trouxe a garrafa térmica – também arranjada pela mãe –, repondo o café nas xícaras vazias – e eu não pude evitar outra comparação da xícara salmon com a sua própria dona –. Tudo é tão difícil com você, te deixar não seria diferente... Cansou-se, se largando agora sentado mais próximo de mim à mesa, tentando se contentar somente com aquele café preto pra hoje; e eu que já estava cansada há tempos, percebi que ficaríamos ali até terminar tudo o que restava na garrafa, e depois os beijos de sempre, e então eu iria embora, descansar ao fim de mais um dia, sobrevivendo a mais uma dr frustrada e engolindo a rotina de mais um quase-amor desastroso. E amanhã, tudo de novo.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

The girl and the round mirror

Once upon a time there was a little girl who lived in a dark and huge wood. She lived there alone and her only company was an old round mirror. She liked to think of it as her best friend. When she looked at the mirror she couldn’t see anything but small flashes of light and it never crossed her mind it was supposed to show an image, because it was like that since forever and she didn’t know any other mirrors. The little girl never really liked that place. Everything around there used to hurt her. The trunks of the trees were too rough for her to hug them. The roses had too many thorns for her to touch. The waterfall had too strong waters for the girl’s littleness. The sand was too hot during the day and too cold at night for her to stand it, therefore she could never take off her shoes, not even once in a while. Some nights the shadows which lived behind the trees didn’t let the little girl sleep. Some days she just sat and cried all day long. In these days, the mirror that was always in her hand or inside her dress’ pocket began to shine very strongly reflecting the sunlight in the girl’s face, as if it wanted to make her smile a little bit. When this used to happen, the girl remembered of the sun and looked toward the mountains, wondering what might exist beyond the wood. One night, the little girl was so scared, so sick and tired and in such pain that she considered letting the strong waters of the waterfall take her away. She took off her clothes and shoes, following the sound of the waterfall, while the ice-cold sand burned her feet. When she was about to jump, the mirror was lit with a light that was enough to illuminate the whole forest. She jumped back in fright and then she bent down, grabbing the mirror in her hand. When she looked at it, the girl could see her own face in the old mirror, and it said: “little girl, do not worry…” At first she got scared but then she was impressed with how beautiful that image was and with the way it came to life. “Do no harm to yourself because one day you are going to find a way out of this place. You’re going to be free, and when this day comes, you’re going to need no trees, no roses, and no waterfalls to make you happy. Nothing and no one to make you happy… no one but yourself.”

sábado, 9 de julho de 2011

Pode me chamar de estrago




De novo e como sempre: sua euforia não durava mais de quinze minutos. Não sabia se era feliz, com alguns instantes de desamparo, ou se era triste, com alguns minutos de falso divertimento. Há pouco tempo ria, fumava, falava alto e agitadamente. Tocava as pessoas, cumprimentava conhecidos, observava como uns e outros estavam vestidos e se a decoração da boate tinha inovado hoje. Dançava feito louca, como se o mundo fosse acabar nos próximos instantes. Horas depois acordava do lapso de ânimo, com a antiga sensação de não saber onde está e o porquê de estar ali. Olhava ao redor, via as pessoas se divertindo, via os rostos bonitos, os toques e carícias, a juventude ali, tão limpa, tão exposta. Tentava recuperar o ânimo escapulido, sem sucesso. Tentava fazer seu caminho até o banheiro, provavelmente já muito sujo a essa altura, assistindo à sua volta aquela gente que parecia tão verdadeiramente preenchida, tão viva  mal se sabia tão enganada . Entrou no banheiro masculino, supondo como o outro estaria cheio, evitando contato, evitando gente pra lhe atiçar perguntas sobre seu estado físico e emocional. Aliás, tinha mesmo essa tendência a evitar. Sua mente girava um pouco por causa de uns Martinis, embora não fosse fraca pro álcool. Diferente disso, era fraca pros sentimentos que habitavam dentro dela, eles sim causavam ressaca; e ressaca de anos. De repente se sentiu só, profundamente só, uma sensação estranha e desesperadora que só pode ser mais proximamente definida por uma sensação de não mais existir. Os sentimentos que ela tanto sufoca diariamente lhe escapavam, vindo à tona de um jeito mais forte do que o que ela podia controlar. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... Ecoava pela sua cabeça, se repetindo compassadamente. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... A música alta ecoava junto aos seus pensamentos embaralhados, o som esbarrando na porta e indo ao seu encontro. As batidas eletrônicas tentando puxá-la de volta à realidade, ao momento presente. Inútil. Ela já não estava mais ali. Havia se perdido, acontecia vez em quando. O que detestava mais nessas noites de suposta felicidade era justamente o medo, medo da felicidade. Medo porque o que está ali pode em instantes escapar, sumir talvez até mais facilmente do que a fumaça que lhe foge pela boca agora e se dissipa leve no ar. Ela odiava a rebeldia de suas lembranças, a dificuldade que elas tinham de obedecer suas ordens de ficarem exatamente lá: onde ficava tudo o que ela separava e trancafiava na caixinha de quero esquecer, preciso esquecer, e era violenta a forma como lhe atingiam. E era violenta a perda súbita da euforia que há pouco se encontrava ali, era violenta a solidão, as vozes na sua cabeça, era tudo violência suficientemente bruta e forte pra lhe derrubar ali, no chão daquele banheiro público e imundo, o que não lhe importava tanto: talvez fosse o chão tão imundo quanto era ela por dentro de si. Sentia vontade de chorar, não conseguia. Estava tudo tão preso, era toda tão cheia de não conseguir deixar as coisas saírem de dentro. Embora. Deixa ir. Não conseguia. Não sabia por que, não conseguia. Talvez porque fosse tão só. Só ela e esses fantasmas como companhia. Os olhos brilhavam de angústia, umedecidos, mas nada lhe corria o rosto, como se fosse vazia demais, até pra isso. É muita inflamação pra tão jovem coração. Veneno demais, ferida demais pra tão pouca vida. Alguns já tinham a percebido ali com olhar de estranheza, porém sem mais preocupações: todos chapados demais pra se importar. Jogada, se abandonando. Soa triste, mas era tão boa a sensação. Só ela e o chão. Sem ligar pra roupa se encardindo, sem ligar pras pessoas observando, eliminando toda a importância que se dá ao mundo, ao corpo, à lama, à gente, ao mundo. Todos aí fora, são tão sujos quanto eu, sem nem precisar sentar aqui nesse chão! O cigarro quase ao fim e agora começam a tocar uma de suas músicas favoritas, mas ela não se importa. Ela não está mais ali. Não há mais a porta por onde entrou como caminho de volta. Não há mais como engolir todo o lixo de volta e colocar no lugar a felicidadezinha micha do início de noite. Pelo menos não mais naquela noite. É mas talvez eles sejam felizes... Talvez eles sejam algo além de sujos. Algo além do que o que eu consigo ser. Um sujeito alto parado em sua direção, ela nem havia notado a hora em que chegou. “Ei, você tá legal?” Sua voz se atrasava em chegar até ela. “Precisa de ajuda?” Ele disse enquanto ia se aproximando devagar, cuidadoso. Ela não enxergava direito aquele sujeito borrado, quis pedir pra que ele parasse um pouco de girar. Não respondeu nada. Ele não voltou a perguntar. Em vez disso, agachou perto dela, procurando talvez forma de fazê-la mais confortável, pra se sentir útil. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... “Você quer que eu chame alguém ou que eu te leve em algum lugar?” Balançou a cabeça negativamente, mas logo em seguida lhe ocorreu a ideia de que explorar um desconhecido talvez fosse útil em lhe distrair daquele vazio sem fim. “Como você chama?” “Fernando. E você?” “Pode me chamar de estrago.”

quinta-feira, 7 de julho de 2011

P.S. devolve a minha camisa dos Ramones

Então ele gritou falhado, com rouquidão maior do que o normal por conta do longo tempo que já durava aquela conversa que de tão áspera, já ultrapassava os limites de uma rotineira briga de casal: eu vou embora! Eu sabia que já havia se decidido, vez que, por me conhecer, ele podia prever que nada ouviria de mim além de: como quiser! Também aos gritos, é claro. Mas ele não foi – pelo menos não naquela hora –, em vez disso, sentou na poltrona. Talvez pra tentar se acalmar; talvez por ainda ter coisas por dizer e depois disso a esperança(ou desespero) de resolvermos tudo de novo – ou de empurrarmos pra debaixo do tapete, porque resolver não combinava com a gente –; ou talvez pra ficar para mais, simplesmente por gostar de mexer na ferida. Nós dois gostávamos. Eu disse que sentia nojo, dele e de sua inutilidade. Que ele deveria arranjar algo que realmente importasse pra fazer, ao invés de ficar escrevendo aquelas rimas de Rock bastardas e incompletas – pras quais ninguém dava muita atenção – e se envenenando com álcool e fumaça todos os dias. Ele disse que eu me envenenava do mesmo jeito, e eu disse que pelo menos tinha motivos sólidos e que eu pelo menos estudava, eu fazia alguma coisa da vida. Ele concordou, mas disse que também era problema meu porque se eu estava ali, era por gostar de tudo que ele era. Eu continuei xingando-o e inventando acusações desconexas fingindo não ouvir seu último comentário, porque jamais admitiria que ele estava certo, sabendo que estava. Eu ficava cada vez mais irritada pelo sarcasmo na sua voz e pela calma que aparentava agora, sentado na poltrona, na minha poltrona, me assistindo andar de um lado para outro feito louca formulando dor em forma de palavras pra lhe atiçar na cara: e a propósito, na cama, você não me faz nem cócegas! De novo, aos berros. Ele me olhava com olhar de pena e desprezo, provavelmente refletindo sobre o quão baixa eu podia ser só por raiva. Ele disse que era mentira, e que eu sabia que era. E eu odiava o fato de ele estar certo mais uma vez. E quanto mais certo ele estava, menos eu queria parar; jamais me dou por vencida, e ele também sabe disso. Ele me chamava de ridícula e eu me sentia triunfal por me saber tão superior no quesito crueldade. Eu sempre fui a mais cruel. Sempre. Mas ele também sabia como me fazer ferver de ódio: bastava ficar mudo, desistir. Bom, ele teria que desistir pra que eu saísse como campeã, mas também me irritava profundamente seu silêncio. Em suma, eu só mesmo parava quando me dava por satisfeita. E se ele não mostrava reação, eu o provocava até o fim. Até quando eu decidisse que era o fim. “Você é ridícula”, ele disse num tom baixo, desistindo, me abandonando lá em agitação, sozinha. Sentado na minha poltrona ainda, a coluna desalinhada, quase deitado. “Você é ridícula”, desviou o olhar de mim no mesmo instante em que falava e seu tom diminuía a cada palavra, como que perdendo as forças. Agora ele encarava as mãos abandonadas, deitadas sobre o próprio jeans, fixamente, sem mais aquela esperança de sentar na poltrona e empurrarmos nossa sujeira pra debaixo do tapete. Eu fui até ele, impondo meu rosto bem próximo ao seu, e levantando um pouco os olhos ele podia ver no meu olhar que eu ainda não havia terminado. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, levantou. Foi em direção à cozinha, e eu o segui empurrando-o inutilmente, vez que seu corpo tinha quase o dobro do peso do meu. Segurei seu pulso e o levei até a parede, pressionando-o com a ponta das minhas unhas. Ele se livrou quase facilmente, com um pouco de força, o que não eliminou o fato de eu tê-lo machucado. Eu sabia que gostava de mim. Eu sabia porque ele podia ter dado o troco, ou simplesmente me empurrado para longe dele, pra respirar. Mas nada. Nenhum movimento em minha direção. Ele simplesmente virou o rosto, apanhando suas chaves em direção à porta. Já faz quase duas semanas. Nenhum sinal dele. Agora estou aqui, relembrando todos os detalhes daquela noite infantil, sentada na mesma poltrona, olhando para a folha bege dobrada sob o abajur e o chaveiro da farmácia ao lado, meu coração pulsando forte de medo e, pela primeira vez nesses treze dias, eu me arrependo de como deixamos as coisas chegarem àquele ponto. Eu sabia que ele não voltaria. Aquela fora a gota d’água, como todas as nossas brigas eram a gota d’água e mesmo assim sempre voltávamos a precisar um do outro, ainda quando jurávamos para nós mesmos que nos odiaríamos para sempre; porém nunca havíamos passado tanto tempo brigados, exceto pelo mês e meio em que rompemos, mas depois daquilo, nunca. Sabia que não voltaria e imaginei um bilhete de despedida, uma carta de palavras tristes e, por isso, bonitas; um desabafo, alguma declaração de amor com um “apesar de tudo, não dá mais”, ao fim. Custei a puxá-la de debaixo do abajur, mas quando o fiz, abri com pressa, sentindo minhas mãos estúpidas tremerem, e li, feito com aqueles garranchos desarranjados de compositor barato e músico canhoto:
“as chaves estão aqui.
P.S. devolve a minha camisa dos Ramones.”


sábado, 2 de julho de 2011

Slipping away

"Você tem que deixar essas coisas irem embora, sabe. Só deixa pra lá..." É bonitinho você olhando pro nada, franzindo a testa ao falar da vida como se entendesse muito, em meio aos seus dezenove e pouco de experiência. Se não faz que entende, é porque diz qualquer coisa só pra me amparar. O que é igualmente bonitinho, como tudo que vem de você. Me dá tanta paz só em você mexendo no violão; tanta paz o tapete do teu quarto; e você nem faz idéia do quão alto me leva essa rouquidão na tua voz. Nesses momentos em que só existe o nosso mundo é que eu percebo o quanto você me faz bem. E eu gosto do que a gente tem aqui, mesmo não sabendo o nome. E eu adoro essa sensação de nós sermos tão facilmente extintos como bolhinhas de sabão no ar; essa fragilidade de cristal pendulando entre nós dois; esse espaço tão grande que existe entre o lugar onde eu me deito e o lugar onde você senta pra tocar uma música, esse espaço grande que tudo o que pede é pra ser preenchido. Você nota as lágrimas chegando, mas nem se esforça mais em tentar entender o que eu tenho já que sabe que eu sou cheia desse drama. Mas dessa vez eu não choro só pelas dores que guardo e que só liberto na sua frente. Dessa vez tudo se mistura à descoberta repentina de que talvez eu te goste mais do que o gostar de dar umas risadas e soltar uns desabafos pra você; e talvez eu te queira mais do que uma tarde no final de semana pra colocar os papos em dia e suspeitar sobre a vida. Eu pensei em te dizer todas essas coisas, mas aí eu deixei pra lá. Eu me deixei pra lá e me deixei desaguar enquanto sua rouquidão me alimentava de toda falta que havia em mim, porque por enquanto tava bom assim, em só ouvir você cantar: I'm trying to make it through each day I'm falling apart now in every way I'm finding it harder to get by There's a hole in my heart And I don't know why Now I've come to realize… I'm slipping away.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Bloco 11, apartamento 25

Via mais claramente os muros acinzentados, à medida que ia me aproximando. Passou por mim um leve medo de ser barrado, no caso de você ter deixado meu nome na portaria com o aviso de me impedirem de entrar, caso eu aparecesse. Mas esse pensamento me fugiu rapidamente, no momento em que olhei para o porteiro e ele estava com o sorriso simpático de sempre, seguido do “boa noite” que significava que se lembrava de mim e que eu poderia seguir em frente, sem mais cerimônias. Sorri de volta um sorriso sem dentes, nervoso, sem prestar muita atenção. Subi as escadas com pressa de quem sabe que, se demora mais do que aquilo, desiste. Chego à sua porta ofegante e já nem sei mais se foram as escadas ou o que está por vir. Hesito um instante antes de tocar a capainha, preciso bolar o que falar. O quê não é o grande problema, mas como. Eu precisava te dizer como sou mentiroso quando nos esbarramos por aí e eu digo que estou bem. Como eu me sinto canalha começando e terminando relacionamentos semanais só porque não acho em outras nada de você. Queria dizer como sinto sua falta e como fica difícil de respirar quando, por força do hábito, disco seu número no celular sabendo que não há mais sentido em te ligar. Precisava falar do meu arrependimento por não ter feito nada enquanto te assistia partir. Eu deveria ter tentado mais, insistido, te segurado pelo braço, te proibido, te xingado, talvez até implorado, mas nada fiz. E me arrependo. Um turbilhão de pensamentos me invadem por segundo. Eu paro, tento respirar um pouco, e me dou conta do quão ridículo eu pareço ali, parado em frente à sua porta, as mãos tão suadas quanto as de um principiante momentos antes de encontrar seu amor colegial. Eu poderia ter te dito que te buscaria onde quer que você fosse, que te procuraria, que você não se livraria assim tão fácil. Poderia ter te acusado de ser medrosa por estar fugindo, porque fugindo as coisas são mais fáceis. Mas não o fiz, porque havia também o meu medo. Meu medo de falar sobre o que sinto, esse jogo todo de ter que esconder inseguranças um do outro. Eu precisava dizer como fui orgulhoso e inseguro, mas eu precisava dizer de um jeito esperto, pra assim não parecer tão emocional, você sabe. Eu acho que estou sendo idiota, que já deve ser um pouco tarde, vez que uma garota como você não fica muito tempo sem um novo cara. E me sinto ridículo, de novo. Agora eu me odeio por esses olhos lacrimejando que deixam aparecer aquilo que me esforço tanto pra esconder, e odeio essas pernas bambas e esse sangue borbulhando na veia e as palavras que ensaiei se afastando da minha mente na medida em que a velocidade das minhas batidas aumenta. Eu me arrependo no mesmo instante em que toco a campainha pela primeira vez. Tudo foge da minha cabeça e eu não tenho a mínima noção do que vai ser se você abrir essa porta agora. Eu toco a campainha pela segunda vez e me arrependo de não ter esperado mais um pouco no intuito de não parecer tão desesperado. Agora eu já não tenho mais como segurar as lágrimas que me escaparam só em imaginar você abrindo a porta, você nas suas pantufas e seu pijama de bolinhas roxas. Eu penso em descer as escadas correndo e fingir que nada aconteceu, mas agora já é tarde, já deve haver alguém vindo, e isso seria coisa de criança  porque, claro, eu na sua porta aos prantos e morrendo de medo não soa nem um pouco infantil, imagina . 20:41, você já deveria ter chegado da aula de inglês. Talvez você esteja em alguma festa dançando, bebendo e se divertindo com outro cara. Ou talvez você esteja numa sala de cinema, como de praxe. E com outro cara. De repente me veio um pouco mais de medo, só que dessa vez foi o de ter te perdido pra sempre. Eu me recomponho, imaginando que agora alguém vá abrir a porta: ela não está. Quer deixar recado? Esperar? Passar outra hora? Nenhuma das alternativas. Passado esse surto de coragem, eu nunca conseguiria te dizer todas as coisas que ensaiei. E mesmo que eu quisesse deixar recado, além disso não fazer o menor sentido, eu sei como na sua casa ninguém se lembra de cumprir com esse pedido. Com já muito pouco restando de esperança, eu insisto por uma terceira vez. E ainda não há som nem sinal algum de que alguém venha até mim. Eu olhei à minha volta e tudo parecia tão abandonado. As escadas vazias, o barulho dos televisores baixinho vindo de dentro dos apartamentos vizinhos, as pessoas trancadas. Eu abandonado. Só então eu me convenci de que não havia ninguém em casa. Eu me conformo e até sinto uma pontinha de alívio por ter me livrado dessa, quando a minha razão consegue falar mais alto  você sabe, fugir é mais sensato . Eu sinto que é melhor eu me apressar pra evitar que você me pegue no flagra, caso você chegue de onde quer que você esteja. E assim, você jamais vai saber sobre a cena deplorável dessa noite. Não tem ninguém pra te dizer que eu estive lá, que eu procurei por você, e nunca vai te passar pela cabeça todas as coisas que eu tinha pra te dizer. Volto a guardar tudo pra mim e a única coisa que me resta, tendo esse meu orgulho vindo de novo à tona, é tentar esquecer o vazio que a sua falta me traz. E você, que tanto reclamava da minha falta de sensibilidade, jamais vai saber das lágrimas que chorei só pela ansiedade de falar dos meus sentimentos pra você. Ninguém vai te dizer como eu paguei de pirralho, nesse andar abandonado, esperando você abrir a porta, com os meus sentimentos que tanto escondi, todos reunidos pra te mostrar, e minha esperança toda atada ao simples fato de você atender a capainha. Ninguém em casa.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Os seres humanos me assombram

As bruxas continuam aparecendo, quando não os monstros e demônios. Acordei com a respiração violenta de mais um pesadelo, como tem sido freqüente, desde os meus quatorze anos. Respiro fundo, repasso o sonho, procuro sentido, desisto. Às vezes, é de repente, em meio à ambientes cotidianos dentro de sonhos comuns: uma bruxa. Às vezes a imagem é aquela infantil: o estereótipo de bruxa que temos quando crianças. Às vezes elas são plural, e aparecem como mulheres normais. Outras vezes são homens em ternos, velhos anciões, ou apenas miragens: com direito a capas em veludo para ritual Wicca e tudo. A forma como aparentam é que varia, mas uma coisa é certa: todos bruxos. Certa vez, por motivo de curiosidade, recorri a um desses sites de “interpretação psicológica de sonhos”, ao procurar por bruxas, estava lá: “medo”. Segundo o site, sonhar com bruxas representa medo de algo na vida real; ou o medo como um sentimento/sensação constante, e até mesmo inconsciente, na vida daquele pessoa. Procurei então por outro objeto freqüente: monstros – “insegurança”. Como sou dessas, desconfiadas, visitei mais uns cinco sites diferentes, encontrando resultados, se não iguais, bem próximos uns dos outros. Na época, tal pesquisa só serviu para que se confirmasse a certeza que, havia algum tempo, eu já tinha: preciso de psicoterapia. Mas isso é assunto pra outra hora. O fato é que, apesar de serem obviamente um tanto assustadores, me habituei aos meus fantasmas noturnos, de forma que parei de me importar. Sinto medo sim, mas pra falar a verdade, meu medo maior é de outra coisa. Desde bem pequena que eu demonstro certo fascínio pelo oculto, obscuro, esquisito, diferente, promíscuo, Rock’n’Roll. Eu sempre tive gostos contrários aos das crianças normais e sempre me atraiu o que, nas outras pessoas, causava a típica torcida de nariz. Eu sempre gostei do feio, do socialmente rejeitado, e de todas as coisas que me diziam que era errado gostar. E em meio a tantas outras coisas que cabem nesse assunto, aqui entra a minha, desde sempre presente, fascinação por filmes de terror e seus respectivos personagens fictícios. Ou não tão fictícios assim. Eu me lembro da Sessão da Tarde na TV depois da escola, me lembro de um filme que contava a história de três bruxas e que se repetia milhares de vezes, mas não importava quantas vezes eu já havia assistido, eu sempre tinha de ver de novo. Me lembro de ter sido apaixonada pelo Mãos de Tesoura – ele foi, provavelmente, o meu amor de infância – e me lembro de, mais tarde, descobrir o mundo encantado dos serial killers. Eu gosto de todo o mistério e do medo que cerca todas essas criaturas. Eu gosto da doença exposta, sem dever nada a ninguém. Gosto do desconhecido e gosto, principalmente, da maldade explícita e não disfarçada. Devo confessar que tenho e sempre tive mais afeição por essa coisa toda do que por seres humanos, e estes sim são motivo de pavor: seres humanos. Seres que maquiam sentimentos e mascaram a loucura; que julgam e apontam enquanto escondem suas culpas. Seres reais, que causam dores reais, desses sim, eu tenho medo. Sim, prefiro a crueldade já previamente conhecida de um roteiro de horror; prefiro o medo em forma de fantasia e os Kruegers, Jasons e Latherfaces de mentirinha. Prefiro que me deixem com as minhas bruxas, com as minhas idas incessantes à vídeolocadoras, saindo com pilhas e pilhas do que mais gosto embaixo do braço: O Exorcista, Sexta Feira 13, O Bebê de Rosemary, A Chave Mestra, O Massacre da Serra Elétrica...
– E você vai assistir tudo isso sozinha?
– Sim, senhor. 
– E você não tem medo?
– Não, senhor. Eu tenho medo é de gente.


sexta-feira, 17 de junho de 2011

Nada antes de você

Eu queria ter te conhecido antes. Queria que você fosse o primeiro e que antes de você não existisse nada. Queria ter te conhecido antes do meu coração ser tão cansado, machucado. Quando palavras más ainda não haviam me apunhalado o peito, e quando não existia nada de mau, assim também agora não existiria o medo de tudo de novo. Queria ter te conhecido quando éramos crianças, quando eu ainda acreditava em príncipe encantado e no amor. Quando não era por dentro cheia de dor, de mágoa. Na infância, quando as coisas são simples, bem simples, e a imaginação fantasiosa poderia resolver qualquer pequeno problema que cruzasse nossos caminhos. Quando o mundo ainda não tinha chegado, esfregando sua realidade imunda em nossas faces. Queria que não existissem lembranças, nem passado, nem fotografias e cartas e lugares sem você. Arrependimentos e decepções. Esperança, expectativa, desejo. Nada antes de você. Porque assim tudo seria mais fácil, e acreditar no felizes para sempre não seria tão impossível. Assim nossos dias seriam menos árduos sem os fantasmas de outros amores rondando nossas mentes, esperando brecha, na espreita de levar embora o que havíamos demorado para construir. Seria mais fácil, seria mais doce, não seria vida real. O que há agora, de verdade, são dois corações: partidos, rancorosos, pessimistas, e amedrontados. O que há agora, de verdade, é mais uma quase-história de amor; ou mais uma história de amor adiada, pra talvez um dia, em outra hora, quando tudo for mais fácil, menos pesado, menos doído, nunca.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Vem cá

Vem cá, deita ao meu lado do sofá. Ou por cima de mim. Por que a gente tem que fazer do jeito complicado sempre? Porque quando estamos bem nos enjoamos, nenhum dos dois gosta muito de mel. E é nesse drama que a gente sente alguma coisa, e é assim que a gente mantém isso aqui e vai empurrando pra frente, e aí vai. É uma forma de sentir, a dor, o desespero de perder o outro, é assim que o amor dá as caras. É da decepção nos olhos do outro que a gente faz sangrar o coração só pra, só por um pouquinho de prazer. Só pra sangrar e depois se acolher. Você sempre faz isso, se afasta pra respirar um pouco que é pra a gente não se matar. Como agora, que você ta aí de frente pra janela, esfregando as mãos da testa à cabeça, assanhando o cabelo do jeito que eu gosto. Você tá tão lindo aí, no reflexo do resto da luz do sol que entra, a sombra te cortando em pedacinhos. Meus olhos tão inchados de tanto chorar e eu enxergo borrado por causa de umas gotinhas que não escorrem, mas mesmo sem poder te ver claramente eu sei como você fica lindo na janela. E eu sei como você fica ainda mais lindo do que já é quando eu te odeio. Eu te amo tanto que chega dói no peito. E eu te amo mais porque eu sei que você não vai embora, mesmo quando você diz que vai embora. Ninguém vai embora. Porque a gente ama isso. A gente ama os pedidos de desculpas e como o sexo fica melhor depois. Eu amo eu me fazendo de vítima imitado voz de menina pequena e você enxugando minhas lágrimas, cuidando de mim, fingindo que é porque quer, fingindo que não é porque eu te manipulo bem direito. Eu amo as linhas que se formam na sua testa toda vez que eu te faço preocupado, magoado, confuso ou desesperado. Eu conheço cada uma delas. Eu amo a sua pele branca resplandecendo na luz da janela. Eu amo você dando um tempo de mim pra esfriar a cabeça e a saudade que me dá de você me abandonando jogada no sofá. Porque eu te deixo louco, é o que você diz. Depois você diz que eu sou louca, e é por isso que a gente dá tão certo. Desse jeito torto de gente doida e masoquista. Essa novela que é nós dois e esse amor bandido que é tão bonito quanto você nervosinho na janela.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Há tanta vida lá fora, depois da janela, dobrando a esquina






A sensação de doença. A alergia irritando o nariz. A amargura do café que acabou na boca. A garganta que arranha pra tentar se livrar dos pedacinhos de alguma coisa que parecem estar lá no fundo. Da garganta. Há tanta vida lá fora, depois da janela, dobrando a esquina. Há tanta vida aqui dentro, dessa alma, depois das paredes que criou do lado de dentro, como se as do lado de fora do castelo já não fossem suficientes. Há tanta beleza no espelho agora, e pra quê. Pra um mundo esquecido e que te esqueceu também. Pra um príncipe que não existe, e que te visita em sonho. Pra uma realidade muito mais crua do que a que se espera ter. Só pra esses sonhos guardados que todo mundo sabe que já estão quebrados, mas continuam guardados porque é só o que se tem pra guardar. Tudo guardado pra vida que ela espera acontecer; pros planos que ela espera acontecer; pro amor que ela espera acontecer; acontece logo, vai. Alguma coisa. Qualquer coisa. E o que acontece é a água, pra tirar o nó da garganta e o gosto velho do café; acontece o banho, pra lavar a doença e a mente; acontece de resolver os problemas instantâneos e voltar pra detrás da janela, pra dentro do castelo, pra continuar a sonhar. E é assim todos os dias. Os dias acontecem, só não acontece vida nos dias.

domingo, 29 de maio de 2011

Falta






Sinto falta de você e do nosso próprio mundo, quando nada mais importava porque tínhamos um ao outro e isso era mais do que suficiente. Sinto falta das nossas tardes chatas de domingo que não eram chatas porque, novamente, tínhamos um ao outro. Falta do seu cheiro, da sua pele. De nos dois juntos no ônibus. Nós dois juntos sonhando e fazendo planos. Nós dois juntos compartilhando nossas loucuras que o mundo tanto estranhava; nós dois nos entendendo, nos sentindo. Falta de não ter que estar sozinha, de não ter que encarar a solidão. Do meu sonho bom. De ter pra quem contar sobre os meus dias, cada pequeno detalhe. Falta de alguém se importar, de cuidar de alguém. Falta de tudo, tudo mesmo. De você pertinho, de ser sua única garota. Das nossas fugas, nossos segredos, seus sussurros no meu pé de ouvido. Falta das nossas risadas, de poder ser como criança de novo. Da nossa amizade; de confiar, de me sentir segura sem ser julgada. De ser acolhida quando a dor chegava. De brigar com o mundo, e nunca com você. De abandonar tudo, mas nunca, você. De ser tudo mentira: todos os contos de fada, os sorrisos cínicos na cara das pessoas, as boas intenções, tudo, menos eu e você. Falta, falta, falta. Isso é tudo que tem aqui agora, ao lado da minha cama, dentro do meu coração, em todos os lugares que você já ocupou. Falta muita coisa. Falta de você, falta de amor, falta de mim mesma.

sábado, 14 de maio de 2011

Could you be the devil, could you be an angel

Então eu olhei nos olhos dele, e foi como uma daquelas coisas que não se deve fazer. Olhos de anjo decaído. Todo o encanto e sedução que eu, como mortal, jamais havia imaginado existir. Não foi como amor, não foi doce. Foi pecado, e eu senti arder em mim fogo quente quase como o do inferno se eu, como mortal, conhecesse tal lugar. Ele ficou parado e não fez sinal algum em minha direção, porém não deixou de me notar em todo aquele transe e todo aquele olhar de fascinação e todos aqueles pensamentos que, eu tenho certeza, ele podia ler. Eu li e reli então o seu corpo por inteiro e eu senti dos desejos o mais arrebatador. Eu olhei nos olhos dele novamente e foi como uma daquelas coisas que não se deve fazer, então com toda a força e manipulação daquele olhar, eu quis, quis por inteiro provar daquela criatura inteira com a minha língua. Eu quis aquele corpo em mim e eu quis que me levasse, me levasse onde quisesse. Eu olhei nos olhos dele e tudo nele podia me controlar completamente. Ele me empedraria se quisesse. Tudo que eu sentia era queimar tudo em mim. Eu notei cada linha daquele corpo e era como se a cada caminho que eu seguisse eu me perdesse mais, só que eu não sentia medo. Aliás, eu era incapaz de sentir coisa alguma. Todo o ar segundos antes disponível já havia sido roubado, desapareceu, e eu quase podia ver asas nascendo por detrás daqueles ombros nus. Eu fotografei visualmente como cada fio de cabelo parecia escorregar perfeitamente sobre aquele rosto pálido, aqueles fios negros, todo aquele contraste e novamente, olhos. Eu quis correr e me lançar em seus braços, mas então eu consegui sentir, e senti medo. Medo que ele desaparecesse no ar, medo que voltasse ao céu ou ao inferno e que dessa forma fosse tirado de mim. E não era amor, era necessidade. Eu não poderia agir como se fosse amor. Eu queria que ele viesse, que ele me dissesse que ficaria, que houvesse forma de fazê-lo meu. Pra sempre meu. Somente meu. Eu queria roubar aqueles olhos pra mim, e as asas para que ele não pudesse partir. E que o fogo que a essa altura já havia tomado meu corpo por inteiro jamais se esgotasse, porque no mundo não havia nada perto disso.
Ele me sorriu de lado e aquilo foi como uma faca afiada no meu coração que pulsava forte e agora sangrava. Deu um passo para trás, e eu queria puxá-lo de volta, mas estava longe. Como eu viveria agora? Como se mostra o céu a alguém e o pede que se contente somente com a Terra novamente? Eu tentei gritar por ele, porém além de não conseguir desprender a voz da minha garganta, eu não sabia como chamá-lo. Eu não sabia se o chamava Lúcifer, ou sonho meu. Eu não sabia quem ele era ou o quê. Eu não sabia se foi só um sonho. Mas ele sumiu.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Capítulo 7

Dor. Claridade. Dor. Só queria fugir, mudar um pouco de ambiente, conhecer gente nova – sabe-se lá o que ele queria – e já na segunda noite o que arranja é um nariz quebrado. É fato que, onde quer que esteja, suas noites nunca eram muito criativas, quase sempre terminavam assim: briga; de modo que a sensação já era por muito tempo conhecida, estava acostumado. O que, obviamente, não torna a dor menos dor. Levou um tempo pra retomar a memória, entender onde estava e tudo o mais. Mais um cara no quarto, três na sala, garrafas vazias de cerveja espalhadas por todo o apartamento pago por dois meses. Procurou sem muitas esperanças por alguma coisa na geladeira que servisse como café da manhã, mas não demorou muito a perceber que não havia nada lá além de garrafas de cerveja. Lavou o rosto – ou a parte intacta que restava dele –; no quarto, cinzeiros e restos de cigarro pelo chão; colocou a jaqueta de couro, descendo as escadas do prédio no caminho à padaria.
Pediu café forte e puro, acompanhado de bolinhos recheados com queijo. E tudo tinha tanto o cheiro de casa que era inevitável aquela invasão abrupta da sensação de falta; saudade, é como chamam. E tudo do que ele tentava fugir, e toda a fraqueza que se tenta enterrar, estava ali: viva como nunca antes. Ele acorda, naquele susto de quem volta pra vida real depois de passar uns segundos perdido em lembranças. Olha em volta. Umas pessoas trabalhando, outras sendo servidas, muitas passando pela rua – a caminho de seus trabalhos, escolas, encontros –; ele pensa sobre elas. No que estariam pensando enquanto tomam seus cafés solitários. O que conversam os casais que se fazem companhia. O que elas já deixaram pra trás? Quem as espera em casa enquanto não voltam? Talvez tantas perguntas sejam só tentativas um tanto desesperadas de encontrar nas respostas uma identificação; ouvir de alguém que ele não está sozinho, que coisas difíceis acontecem com todos, que existem sentimentos que todo mundo experimenta da mesma forma, e que tudo um dia ainda pode ficar bem. Deixa a grana e sai. Entende logo que era um daqueles dias em que sua mente se contorce sem parar, e decide a qualquer custo não enlouquecer, não hoje. E já era o isqueiro que não ascende. Talvez por ter deixado-o cair.

domingo, 8 de maio de 2011

Capítulo 6

Nada pior do que ter de acordar às seis da manhã de uma segunda-feira a fim de gastar no trabalho o restante da vodka que ainda corre pelas veias. Tentando, só conseguiu se recordar vagamente de alguns fatos da noite passada – frases soltas e gente meio embaçada – percebeu que havia exagerado. Mas fazer o quê, ela era assim. Ou tudo, ou nada. E quando sai da toca, é disposta a sentir tudo o que a sua doce e invisível caixa protetora a impede de sentir. Ela gosta assim. Na verdade, não é bem uma escolha. Nasceu com isso, essa luta louca contra todo tipo de limite que possa existir; essa ânsia de alma tão grande que quer sair de si. E não se importava. Como toda grande alma, também é boa o suficiente em peitar as conseqüências. E como ela fazia isso? Não dando à mínima. 
Trabalhava na biblioteca estadual da cidade, a única por lá. Quanto ao ambiente, não havia muito que reclamar. Era uma biblioteca completa, por assim dizer. Muito bem estruturada. Quanto ao trabalho e a vida, várias queixas. Porém ela simplesmente guardava suas insatisfações para si: tinha vivido o suficiente para saber que lamentação nunca serviu como um passo à frente. Tinha os seus sonhos, os possíveis e os por demais imaginativos que só poderiam mesmo vir de pessoa como ela, dessas que te tanto viver em meio a livros, se ambientou a verdades pouco conhecidas, a desejos do improvável e incomum e, principalmente, dessas pessoas de alma tão grande que a vida real, definitivamente, jamais seria capaz de lhe oferecer o que deseja a alma. Por isso, fogem. Fogem e se perdem nos lugares mais sombrios de dentro de si; nos palácios mais altos de um mundo criado só para alguns instantes de prazer, prazer este negado pela imperfeição que vem junto com a vida - a de verdade -.
Depois de um certo esforço vindo do velho despertador de pilha fraca, é que consegue despertar. Ela levanta e vai direto ao espelho e nunca nem se perguntou a razão de tal ritual. Talvez se perdesse durante o sono, talvez sentisse falta de si mesma ou acordasse deveras desnorteada precisando retomar a sua imagem. Talvez tudo isso junto. Maquiagem borrada e cama vazia. A única coisa boa em acordar é que essa é a hora em que, por costume, todos desjejuam com a sua bebida favorita – como se ela já não tivesse, por costume, o vício em café a qualquer hora do dia –. Ela se perde com tamanha facilidade, desde pequena que é chamada a atenção: “Está ouvindo o que eu falo? Você ta sempre no mundo da lua. Mas que lerda!” pra falar a verdade, ela tinha certa capacidade de se acostumar a coisas que, naturalmente, seriam irritantes e, por isso, nada do que sua mãe um dia falou surtiu algum efeito sobre qualquer coisa nela. Corta o pão, pega a manteiga, e tinha alguma coisa no café, ou alguma coisa que olhava pela janela que a fez lembrar-se dele. Ou foi só mesmo a insistência em recordar a noite passada – acha tão estranha a sensação de não se lembrar de quase nada, não pode ser! –. 
Jurava que chegou a sentir uma leve alteração nas batidas, até então, quase imperceptíveis do seu coração, ao ver a imagem daqueles olhos voltando a sua memória. Eram tão vivos e presentes que ela quase podia voltar à cena; ela quase podia vê-los ali, parados em frente à janela, bloqueando a passagem de luz, como se a própria luz que viesse deles fosse suficiente. Relembrou a voz dele e os flashes vinham mais rápidos do que o que ela podia controlar. “Você não quer cuidar?”, sorriu e se seguiu o som do alarme que indicava seu atraso, antes que pudesse se dar conta do quão ridícula parecia em pé ao lado da pia sorrindo ao pensar em como havia lhe agradado a voz do tal desconhecido.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Oh






Oh, e quem poderá a mim julgar? Pois sim, estou experimentando de tudo, estou buscando qualquer coisa na tentativa cega e louca de preencher esse vazio que me acompanha desde que me entendo por gente.
"Me bata, eu só preciso sentir alguma coisa."
E eu vou assim, amando garotos eternamente por uma noite, partindo ao amanhecer do dia, antes que possa me lembrar de quem são. Antes que sintamos nossas faltas, cada qual. Mas eu sinto todas as faltas. Falta é só o que eu sinto. E eu vou assim, eu deixo pelo medo de ser deixada. Eu não amo pelo medo de não ser amada. Eu me apresso para evitar a dor, eu anulo a já acumulada. Eu me engano, eu me entorpeço, eu tento tudo. Eu engano, faço bem. Mas é sem querer. É necessidade. É necessidade de amar, de amor. E eu sei lá o que é isso! Eu não posso amar. Eu não aprendi. Ninguém me mostrou. Está longe de mim. Fora do alcance. Eu disse ao analista, eu não consigo. Como é que faz? Eu disse a todo mundo que eu não sei, eles acham que é farsa minha, que eu que quero dizer que não, fazer que não, atuação. Oh, se soubessem que eu sou quem mais sofro nessa coisa de contramão do mundo, nessa coisa de não conseguir fazer como o mundo faz. Ah, se soubessem do preço que pago por ter nascido com essa alma tão inquieta e insatisfeita, tão desfeita. Tão tudo. Tão é o problema, seja menos intensa. Mais leve. Menos alguma coisa. Ah, eu não consigo. Eu não consigo tão tudo. Eu só consigo ser eu. E nem isso eu sei bem o que é.
Então é isso: eu tenho tentado de tudo, e quem vai dizer que estou errada? E quem disser que me dê fórmula pronta, e que me ensine como se morre de amor. E que me ensine como sentir. E que me faça logo sentir. E que me prove que estou errada, se nem sabes quem ao menos sou. Mas não se preocupem não que eu vou atrás de diagnóstico, eu vou perguntar ao doutor. Eu vou ver se ele sabe quem eu sou. Enquanto isso eu continuo tentando me encher de alguma coisa. Ou continuo fingindo para mim mesma que o faço. O que mais eu posso fazer?

domingo, 10 de abril de 2011

Still alive

Surpreendeu a si mesma diante da seguinte constatação: estou viva! Dezessete anos e tanto, e é tão pouco ainda. Lhe invadiu a amiga tão pouco íntima, distante felicidade: estou viva. Estou viva e na cara dos meus dezoito anos. Duas idades, uma transição, quatro números, só se tem uma vez. Pensa no seu aniversário, sente que pela primeira vez na vida – depois da infância – seria alegre esse dia. Entenderia o sentido de completar mais um ano de vida, e não de se aproximar cada vez mais do fim – que era a forma como costumava pensar -. Só agora se deu conta de que esses anos são irrecuperáveis. Pensou em um turbilhão de coisas. Só nessa idade os problemas desapareceriam com um simples “foda-se”. Só aqui podíamos nos dar o direito de fazer todas as merdas dignas dessa idade e ao luxo de não fazer direito porra alguma. Pensou nas pessoas que passaram pela sua vida, pensou nas que haviam permanecido. Pensou que as amava pra caralho e que amava o mundo inteiro – ninguém acredita, nem ela, mas amava demais -. Pensou que estava viva e que poderia não estar: quantos não chegam até aqui? “A morte pode estar atrás da porta”, como havia ouvido do professor neste mesmo dia, na aula de literatura. Pensou em como poderia nem ter nascido, em como não deveria, mas, no entanto, estava aqui. Pensou no quanto chorou todos esses anos, ah, não foi pouco! No quanto apanhou da vida, doeu pra caralho. Lembrou que podia estar toda costumarada por dentro, e estava; lembrou dos que lhe fizeram sofrer e pediu que lhes avisassem: “ainda estou viva”. “- Eu poderia nem ter nascido, eu não deveria, mas eu sou teimosa. E filha da puta. Eu sou teimosa e filha da puta. Um brinde aos filhos da puta!” olhava para o céu, se sentia grata, os olhos concordaram, as lágrimas se deitaram. Agradecia:

“- Pela vida,

Deus.

Apenas pela vida.

sábado, 9 de abril de 2011

Sede

Eu não quero a água, a comida, o amor;
Eu quero é o querer.
Meu ânimo reside na busca, na falta, na ânsia,
Na sede.
O saciar me entedia, a solução me atrapalha;
Me delicia a angústia,
Eu quero é o querer.
É do desespero que mantenho viva a angústia do viver.

Quero que vá embora enquanto ainda é tempo. Quero que isso acabe, aqui, bem no início. Quero que vá, enquanto ainda há tempo de esquecermos dos rostos um do outro. E não me digas que já é tarde, que já não há vida sem mim. E não me fale em amor, que assim ninguém se engana. E dor é o que eu estou a tentar evitar. Vá.
O que não entendes é que alerto-te para teu próprio bem. E não me digas que teu bem sou eu. Ainda que eu seja, sempre sou por pouco tempo. Como sempre. Vá antes que te quebres ao meio. Antes que te machuques. Vá antes que eu te gaste até abusar-me de ti. Antes que te use e te cuspa de enjôo. Vá antes que o tédio da rotina nos corroa pouco à pouco e antes que o dia após dia nos tire a graça de contemplarmos nossos semblantes, maravilhados de paixão. Antes que nos odiemos e a acidez tome o lugar do amor.
Não vês que sou impertencente? É que não sei bem amar e enlouqueço se perco o controle. É que não sei me deixar levar, levar pra onde? Eu sempre preciso saber. Não dou sessenta e um dias para ficar toda querendo fugir  isso acontece toda vez que pressinto alguém me roubando de mim –. Eu me recolho e encolho toda, eu evito e expulso, eu não sei ser de. Eu só sei ser, nem de mim mesma eu sou.
Gravito.
Eu escapo.
Experimente, ou não experimente  é melhor que não  roubar a minha liberdade, é assim: o desprezo me vaza pelos olhos e da minha boca brotam palavras que mais parecem lâminas. Isso para não falar no cansaço, oh meu deus, me canso toda, eu sempre canso! E canso e canso. E eu já falei da insatisfação jamais assez? Oh, garoto, não vai importar lá no final das contas o quanto você se esforçou, eu vou querer mais, mais e mais. E isso é sempre. Eu vou olhar para o lado, eu vou desejar outro garoto, garoto. Eu vou querer tudo de novo, com ele. Por isso vá-te embora, antes que eu quebre teu puro coração ao meio. Às vezes, eu nem faço: alguns garotos se quebram sozinhos. Eles ficam a me olhar e, mas o que eu posso fazer? Só aprendi a amar a mim. Depois eles me cospem também e ficam cheios de espinhos e eles ficam amargos, mas o que eu posso fazer.
Veja que já me conformei, não vês? Sou algum tipo de alguma coisa que não sei chamar, coisa que envenena todas as almas por onde passa, e elas nunca ficam as mesmas. Eu estrago. Eu sou um estrago. E é sem querer, garoto, é sem querer.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Quando liga o chuveiro, é quando as lágrimas vêm. E junto das lágrimas, tudo o que ela guarda, tudo o que ela é. E somente sozinha é quando consegue ser. No resto do tempo se esconde, se guarda, se perde dentro de si e ninguém a encontra. Ela perde parte de sua visão esperançosa que vaza pelos olhos, assim como seu entendimento, e o que resta são somente dúvidas – tão solitárias quanto a menina, em sim –. Porque as coisas têm de ser tão duras quando seus desejos são tão simplórios? Pois só queria que alguém chegasse enrolando-a em uma toalha quente, só queria ter alguém. Queria que o alguém dissesse que ficaria tudo bem. Seus desejos me parecem muito simples, nada fora do comum. O que a quebrava no meio era justamente a tal constatação: estou só. Estou? Ou sou? No final, surte o mesmo efeito. Ou não surte nada. É mais falta dele, do efeito. Estar só, ser só. É o que lhe dá força, mas também é o que lhe quebra. Lhe quebra, mas lhe dá força. Por ter que lutar o triplo, por ter que lutar por si, por não ter nada a perder. Tenha medo daqueles que não têm nada a perder, ouvi dizer que são capazes de qualquer coisa. E medo dos que lutam por si só, estes são como animais que, uma vez atiçados na selva, se viram obrigados a se adaptar. Coragem não lhes falta. Medo também não. Mas o medo deles é diferente. É daqueles que impulsiona e que, uma vez sentidos, desperta-se também a vontade de superá-los, a vontade de desafio. E vou dizer-te, essa garota era como um animal selvagem que, desafiada pela vida, se superava todo santo dia. O mundo a cutucava e assim ela aprendeu a responder. Era sim cheia de medo,  se encheu dele à medida em que conheceu os seres humanos – todavia era feita de uma coragem incalculável que parecia jorrar de uma fonte natural, de reserva infinita, de dentro dela. E se precisas de mais, ainda te digo: como toda boa personagem de destaque, não tinha nada a perder. "Eu sou a minha própria armadilha. Eu sou com quem eu devo ter cuidado. O mundo se passa aqui,
dentro de mim."


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Quando vale a pena

Sabes quando sabes que valeu a pena? Sabes quando tu te deitas, te pões a relembrar. Te lembras de como choraste, de teu coração ter se encontrado tão apertado. Lembra-te das dúvidas, das esperas incansáveis, da procura por causa do desespero de tê-lo ali. Lembras de querê-lo noite e dia, incessantemente, de estais presa àquele sentimento. Mas lembra-te que o que é angústia, também é o mais saboroso de sentir, entre todos os outros sabores. Então te lembras das boas horas, de não estar só. De risos e risadas e de ir às nuvens ao ouvir certa voz. Pensas no passado, pensas no presente, e se sente satisfeita por ser quem és agora. Por não ter deixado se estagnar, devido ao medo. Por ter jogado o jogo, ter vivido, arriscado. Sabes que valeu a pena quando tens mais coisas boas a te lembrar do que ruins. E, às vezes, mesmo com muitas memórias ruins, talvez ainda tenha valido, nem que seja para te ensinar que não deves mais repetir aquele erro. Vale para te ensinar uma lição que, quem sabe, te guiará durante toda a vida. Vale para aprender. E as boas memórias também ensinam. Tudo ensina, por isso que vale. Vale quando cresces de alma, enquanto ser humano que és. Vale quando, ao fim de relembrar tudo, acabas com um sorriso tranqüilo no rosto. Seja por completude, seja por se dar conta de como a vida é mesmo cínica. De um jeito ou de outro, vale quando sorri aquele sorriso de missão cumprida.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Divides

Chegando à porta de casa, ele a deu um beijo de despedida, mas havia algo diferente. Ele a beijou com certo desespero, com uma diferente intensidade do habitual, como se respirasse ela. Soltou-a de repente, no ar.
– O quê? – ela estranhou.
Ele hesitou por uns segundos, demonstrando confusão. – Não posso me apaixonar por ti.
Ela olhou-o assustada, girou os olhos lado a lado, como se buscasse pela resposta. – Nós paramos com isso, então.
– Não consigo. – ele se pegou um tanto perplexo com a constatação.
– Bem... Então acho que já aconteceu. – se entreolharam em confusão e um pouco de tensão, hesitaram em respirar por um instante e foi como se um esperasse pelo movimento do outro.
– Nos falamos amanhã! – ele achou melhor escapar, adiar. Melhor um tempo para pensar. Desceu as escadas, enquanto ela tentava ainda processar as palavras dele.
– Ei! – ela gritou, fazendo ele se virar de volta. Hesitou. – Tu não vais sumir, vais? – seus olhos agora começavam a se umedecer, mas ele era incapaz de notar à luz do dia e àquela distância. – Digo... Porque se fores, melhor que o faça logo! E melhor que me deixe saber... Talvez assim, seja menos doloroso. – ficaram em silêncio por um instante. – Quer dizer... Tu, tu disseste... Então tá! Sei que eu não deveria falar agora, já que disseste que nos veremos amanhã... É provável que queiras o teu tempo... Enfim, disseste que nos veremos amanhã. Ok. Tudo bem! – e então as lágrimas escaparam, contradizendo suas últimas palavras. Ela procura a chave certa, agitada. Encontra. Ele sobe ligeiramente os poucos degraus até a porta e a puxa de volta.
– Estás com medo?
– Sim.
– Tens medo que eu suma?
– Sim, tenho.
– Por quê? Se eu sumir, o que acontece?
Ela pensa um pouco, na dúvida se deve ou não entregar o que sente. – Vai doer... É tudo muito novo, numa hora somos conhecidos e de repente... Mesmo tudo tendo sido tão rápido, senti medo de te perder quando me deste as costas. E foi uma dor ligeira, mas forte, aguda.
– Então parece que não estou sozinho aqui...
– Mas nossos medos são diferentes. Sinto medo de te perder, pois meu coração talvez já ache que te tens. Tu sentes medo de que um dia teu coração ache que me tens, também, e então, sinta medo de me perder. Tens medo do medo.
– Não, penso que estás errada. Ora, pois deixe de lado esses cálculos! Estamos apaixonados... E é só.
– Mas queres fugir!
– Não quero mais.
– Porque não, se tens medo?
– Porque tu tens também.
– E o quê isso muda?
– Muda que compartilhamos do mesmo sentimento. Paixão, porém medo. Medo, porém paixão. E sabendo que sentes o mesmo, conforta-me a idéia de ficarmos juntos. O medo existe, sim, mas se faz menor se o dividirmos. Divides comigo o teu medo, em troca transformo-o em amor... E devolvo a ti. Então fazes o mesmo, e faremos sempre o mesmo, para sempre. Divides?
– Divido.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Te amo

 Então voltastes! Que queres?
 Ver-te.
 E pensas que é assim? Somes e voltas quando queres?
 Não sumi, apenas precisava de um tempo para mim.
 Oh, um tempo para ti! Para fazeres o que bem entendes e te divertir com outras garotas.
 Não existem outras garotas! Precisava apenas pensar.
 Oh, sei. Pensar em que?
 Em nós.
 Há necessidade disso? Digo, se tu me amasses de verdade não haveria em que pensar, certo?
 Talvez estejas certa. Essa é a questão, não sei se te amo.
 E me diz isso assim, desse jeito?
 Não há outro jeito de dizer. E não estou dizendo que não sinto nada por ti, apenas não sei se é amor. Tu sabes o que é amor?
 Ora, mas claro! É o que sentia por ti.
 Sentia? Desde quando não sentes mais?
 Desde que tu te tornaste outra pessoa. Desde que me esqueces enquanto espero por tua ligação.
 Então não era amor!
 Como não? Se tu nem ao menos sentes, como sabes?
 Sei que se fosse amor, não acabaria assim... Tão fácil.
 Então achas que teu desprezo é fácil para mim de agüentar?
 Nunca te desprezei, apenas precisava de um tempo só para mim, já te disse. Por que tenho de ser perfeito? Não posso ter as minhas dúvidas? Sabes, se tu tivesses em meu lugar, certamente eu te esperaria, eu tentaria te entender, mesmo que isso me machucasse.
 Mesmo que eu tivesse a me divertir com outros caras?
 Não existem outras, pelo amor de Deus! Se estou contigo, é tu e acabou. Somente tu. Mesmo quando estou longe, confuso, ainda assim sou teu. E tu és minha. Isso não muda. Quem pôs essa idéia em tua cabeça?
 Só penso que se tu não dás a mim mais tanta importância, só podes estar a te importar com outra pessoa.
 Mas é claro que me importo contigo! Por isso estou aqui.
 Cansou de pensar?
 Achei que tu talvez pudesses me mostrar uma conclusão.
 Como posso te dizer se me amas? Tu é quem tens de saber!
 Já me mostraste.
 Como?
 Quando fez com que eu me colocasse em teu lugar, e vi que por ti enfrentaria qualquer coisa. Ao contrário do teu amor, que já se foi, o meu, tudo suportaria. Era essa certeza que precisava ter. Nesses últimos dias sofri muito, mas resisti em não te procurar. Senti falta do teu jeito, do cheiro do teu cabelo em meu travesseiro. Quase enlouqueci com a idéia de dormir sem ouvir tua voz e me sentia profundamente vazio ao ver que todas as minhas camisas se encontravam dobradas em meu armário, e nenhuma cobria teu corpo. Mas agora tudo isso valeu à pena, por causa da minha certeza.
 Então me amas?
 Te amo.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Há de amar






– Já amastes, pequena?
– Nunca soube o que amor é.
– É que és muito pequena, um dia há de saber!
– E quando souber, se souber, como sei que sei?
– Tu sabes quando tu não duvidas. É simples.
– Nunca hei de amar, então. Sofro a doença dos céticos.
– Ora, pois, ceticismo é razão. Amor não é razão.
– Nunca hei de amar, então. Não ouço o coração.
– Quando amas, não tens escolha. O coração toma a frente.
– E se não tenho coração?
– Mas porque não haveria de ter? Coração lá se acaba!
– De certo modo. Quando se enrijece.
– Tão pequena e de tão duro coração?
– Foi o que a vida tratou de fazer.
– Tão pequena e tão amarga?
– Sim. E creio que amor seja doce.
– Amor é.
– Nunca hei de amar, então.
– Por que não tentas te adoçar? Rapazes gostam de pequenas doces!
– Não mudo.
– Tão pequena e tão egoísta!
– Amor não é egoísta. Eu li em um livro.
– Amor, não.
– Nunca hei de amar, então.
– Mas para que tantos nãos? Tão pequena...
– E tão pessimista! Eu sei, a vida tratou disso também.
– Ora, de tão pequena que és, nada sabes.
– Sei que dói. Não dói?
– Do que estás a falar?
– Amor. Não é do que estamos a falar?
– Pois sim. Não sei, não.
– Como não sabes? Tão grande! De tudo não sabes?
– Alguns dizem que se é verdadeiro, não deve machucar. Outros dizem que dói, todavia vale a dor.
– Dor nunca vale. Dor dói. Por que vale?
– Porque é bom!
– Como pode ser bom o que machuca?
– Sendo. O que machuca durante, também é o que, no princípio, transformará uma pequena como tu, tão cheia de espinhos e nãos, em uma amante. Há de amar, pequena. Amor vivo! De cor!
– Cor vermelha?
– Todas elas! Quanto maior o amor, mais uma delas. Há de amar porque amor transcende dúvidas, por não poder ser explicado à lógica, como havia te dito eu. Há de amar, pois para que se ame não necessitas de esforço para ouvir teu coração. Ele grita. Há de amar, pois para isso é somente necessário que tenhas coração. E tens, que Deus não é esquecido! E por duro que seja, tu tens. Se ele bate, é porque está vivo. O que está vivo pode se quebrar, se dobrar, se inchar. Há de amar, pois o doce do amor é mais forte do que o veneno da amargura, assim como o bem tem vencido o mal desde os princípios da Terra. Há de amar, e quando isto acontecer, te pegarás perguntando a si mesma onde fora parar teu egoísmo, uma vez que pensas mais em outro ser do que em teu próprio. Há de amar, pois o amor é positivo, assim leva embora os nãos. Quando tens alguém andando contigo a segurar tua mão, os medos desaparecem, assim também como a solidão. Então podes qualquer coisa, serás o que quiser, não duvidarás, por não estar mais só. Amor pode machucar, pois, Deus, por algum motivo, fez-nos sensíveis. E traz dúvidas. Até para mim, grande que sou! Tenho muitas delas, mas tenho aprendido que as muitas não importam muito quando tens, ao menos, uma certeza.
Sei que a vida te cortou, pequena. Mas a cura vem para todos. Por isso é que há de amar!

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Você pode ser o que quiser ser

A resposta é: talvez. Talvez eu tenha esse azar, ou talvez não. Na vida há sempre cinqüenta por cento de chance para cada alternativa. Eu posso ser nada, ou tudo. E você pode chamar de ilusão da juventude, otimismo, ou o que quer que seja, mas eu fico com o tudo. Porque eu, sinceramente, acredito que você é o que você quer ser. Se pensas pequeno, então pequeno serás. Se desejas o que já foi alcançado, o previsível, então é isso o que terás, e nada além disso. Mas eu não, eu nunca fui uma pessoa normal. Eu nunca desejei o comum. eu sempre me senti como alguém que estava sendo preparada para o mundo, como se eu pertencesse a ele, e a mais nada. Isso porque eu tenho o mundo dentro de mim, nada mais justo que esse mundo inteiro me reconheça, assim como eu o reconheço. Eu quero tudo, eu não gosto de limites. Eu quero conhecer todos os lugares que sempre vi na tv. Eu quero conhecer todas as línguas e sotaques e todo tipo de gente, também. Gente. Eu quero viajar e nunca ter uma rotina sempre igual. Eu não me importo de viver quarenta anos apenas, desde que esses quarenta me pareçam como duzentos. Quero viver tudo o que eu tiver pra viver, ser o que eu quis e nunca o que alguém me obrigou a ser. Fazer o que quis ter feito e não como me ordenaram. Arriscar. Ter histórias pra contar, ter do que me lembrar. Do que me arrepender, do que me orgulhar - apesar de acreditar que arrependimentos só vêm por algo que você deixou escapar, por medo ou por qualquer outro impedimento -. Eu quero ter o que a vida tiver pra me dar... e talvez um pouco mais. Quanto às raízes, acho que a vida tomou parte de me desgarrar de tudo. Se você me perguntasse sobre algo que pudesse me fazer pensar duas vezes antes de ir embora, eu não saberia te dizer. Nada. Nada me prende aqui. Eu tenho sonhos, e não existe nada acima deles.