sábado, 17 de setembro de 2011

Limítrofe

Você sabe como é estar no alto e cair de repente, estar lá embaixo e então voltar ao topo, chegar ao topo e deslizar logo em seguida, como num ciclo vicioso, repetitivo, mudando involuntariamente de uma cena à outra num curto espaço de tempo, o tempo inteiro? Viver cara a cara com o exagero e experimentar a mais profunda intensidade em cada sentir: o céu na mais simples euforia, o fundo do poço em cada mínimo estado de desânimo. Você sabe como é viver em constante dor, tão dilacerante quanto garras afiadas ao pressionar uma laringe, até sufocar? Assistir os fantasmas do passado a voltar todos os dias, as vozes sussurrando dentro de sua cabeça verdades que você ora aceita, ora confronta fervorosamente. A raiva grita em seu desespero, abafando todos os outros sentimentos que relutam entre aparecer e permanecer escondidos dentro de você, tudo ao mesmo tempo. Conhece aquela sensação de não saber se tudo é mesmo real ou se não passa de um sonho? Consegue se imaginar vivendo com ela a todo instante latejando dentro da sua cabeça? A crítica é rigorosa, constante, involuntária. O ódio e o desagrado são por tudo e todos, e nunca, em hipótese alguma, se experimenta mais de meio instante de satisfação. A sensação de vazio nunca some, todas as coisas levam ao tédio e é aqui que entra a tão marcante tendência ao drama e o gosto, novamente não proposital, por brigas e por qualquer coisa que leve à tentativa de fugir da rotina.
Não, você não sabe como é. Você não conhece esse mundo onde todas as emoções têm mais força, onde tudo é sentido com intensidade perturbadora e tudo só pode ser bem ou mal, oito ou oitenta, céu ou inferno, tudo ou nada, amor ou ódio, sem meios-termos. Preto ou branco, nunca cinza. Desejo, necessidade, urgência. Apatia, desprezo, rispidez. Quem saberia lidar com tamanha ambiguidade sem sentir como se estivesse prestes a enlouquecer? Você não sabe como é viver uma vida caminhando por um fio: basta um passo em falso, um cálculo mal feito.
Quanta doença você acha que se esconde por detrás dessa máscara de boneca? Aposto que você não faz ideia de como dói ser eu. Você não faz ideia de como é ser levado o tempo inteiro à imagem dos seus pezinhos flutuando no ar e um cordão suavemente amarrado ao seu pescoço. Ou pílulas e mais pílulas e mais uma garrafa de vodka pra funcionar como chave do armário imaginário, onde se pode trancar os monstros.
Quantos demônios você acha que podem se esconder por trás do som de uma doce voz?
Tão jovem para um diagnóstico dessa gravidade. “Infelizmente, não há cura, o que há é controle, portanto é importante que não se esqueça dos horários dos antidepressivos e que continuemos a nos ver”. Desse jeito, como se tudo fosse natural, como se nada daquilo significasse: você está condenada a manipulação por medicação controlada e a uma sala de terapia pro resto da vida, isso sem considerar suicídio. Nada de automutilação e, lembrando, nem tente relacionamentos amorosos, jamais serão saudáveis ou duradouros. Você recebe a pior notícia de todas, as atenções estão voltadas a você e, no minuto seguinte, “vejo você na próxima terça”, você é só mais um paciente e é isso, a vida continua. a
É como um câncer, grave e para toda a vida. Só que um câncer escondido dentro da sua cabeça, um câncer que ninguém vê, silencioso e perturbador e que talvez te consuma e te apodreça por dentro. Talvez te domine até o ponto em que você olhará em volta e se verá sozinho, pela doença ter afastado todos que um dia te amaram e tentaram se manter perto de você. Você sempre vai se lembrar de como é um veneno ambulante pronto para ser espalhado, um desastre total, pura sequela  um pote cheio de medos e âncoras e neuroses e psicoses; uma máquina de dor, pra sempre instável e manipuladora, paranoica, impulsiva, extremista, histérica, vazia, carente e assustada. E só. Completamente só. Porque, vamos encarar os fatos, garota: ninguém ama uma borderline.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Janeiro




Já faz quase um ano, mas parece ter sido ontem, vez que cada detalhe permanece vivo em minha mente, e cada cor é quente, tão quente quanto aquele dia de Janeiro. Eu nunca gostei muito de Janeiro. Não tenho uma explicação para isso, eu geralmente gosto ou desgosto de alguma coisa simplesmente pela forma como o nome dessa coisa soa aos meus ouvidos. E eu não gosto de Janeiro. Ou pelo menos não gostava, até aquela tarde quente. Mas se a minha, até então, antipatia por Janeiro precisa de alguma lógica, assim como todas as outras coisas chatas do mundo, então tudo bem. Janeiro foi o mês seguinte à mudança da minha melhor amiga para outro país; foi o primeiro mês em que estive completamente sozinha depois de muito tempo, e eu sabia que levaria muito para me recuperar da falta que ela me faria. Eu me sentia triste quase todos os dias, e só me distraia e esquecia um pouco a saudade quando me afundava perdida dentro de um livro. Eu não esperava muito depois daquele Dezembro murcho. Nada de novas amizades, novos lugares, novos interesses; nada de novidade. A vida continuaria igual, todo santo dia, e a única espera, a única ansiedade e os únicos sorrisos viriam de imaginar nós duas nos reencontrando de novo, mesmo sabendo que isso poderia levar anos. Eu não esperava nada; e depois ouvi dizer que as melhores coisas vêm desse jeito, mesmo. E então, você. Aliás, não parece que foi ontem, me permita essa correção. Parece mais que foi um sonho, apesar de toda a nitidez desse filme que passa e repassa girando na minha cabeça. Um sonho, o mais bonito de todos. Quando cheguei ao meu esconderijo mágico, o máximo que esperava era a sorte de encontrar um livro muito bom, daqueles que têm o poder de me transportar a outro lugar, como que num estalar de dedos, e de me prender lá por horas, como se eu não pudesse achar o caminho de volta, e nem quisesse. Esses livros que só acontecem vez ou outra na vida, mesmo na vida de uma garota como eu, que praticamente mora na casa dos livros. Aquelas escadas nunca pareceram tão longas, acho que por causa do calor, eu me cansava três vezes mais do que o normal a cada degrau e a cada andar que tentava explorar. Eu não me lembro do momento exato em que o meu olhar, naturalmente curioso, te encontrou. Mas eu me lembro das cadeiras e mesas vazias, eu me lembro das cores: avermelhadas, amarronzadas e esverdeadas, empilhadas como fitinhas coloridas nas estantes; eu me lembro daquele último andar quase nunca visitado por mim, e nem pelos outros leitores; chão e teto de madeira e antes só o som dos meus passos baixinho ecoando pela sala vazia, e você. Eu me lembro de você. Sozinho, concentrado, sem me notar; me inclinei de leve lutando contra o pouquinho de miopia para enxergar o que te fazia tão absorto. Scott Fitzgerald. Eu queria um jeito de chamar sua atenção, mas achei indelicado interromper; ainda mais pelo fato de eu não entender nada de Fitzgerald – desculpe, mas eu só leio o que me chama – e sobre qual outro assunto eu poderia falar se não sobre a sua leitura? Seus olhos se levantaram até mim, me percebendo, atrapalhando o meu transe, ou me poupando estratégia de tentar desviar sua atenção. Já fazia algum tempo que eu não esperava nada. Sua voz funcionou como um clique e foi como se tudo o que dormisse há muito tempo dentro de mim tivesse despertado em conjunto. Cada gesto seu me chamava pra mais perto. Cada nova descoberta sobre o outro soava mais harmônica. Tinha tudo para ser só mais um encontro cotidiano, mas não era. Tinha tudo para que eu não tivesse ido àquele último andar, como acontecia a cada visita, mas eu fui. Tinha tudo para eu ter saído de casa uns dez minutos depois, você meia hora antes, e nunca teríamos nos cruzado. Tinha tudo pra você não ter trocado Fitzgerald por uma conversa qualquer com uma estranha curiosa, mas você trocou. E então alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que eu não sei explicar e nem teoria alguma dentro de todos aqueles volumes enfileirados saberiam. De repente eu me senti tão enorme por dentro quanto aquela biblioteca, mesmo com aquele salão central e aquelas escadas imensas imitando braços por todos os lados e aquelas inúmeras salas que dava para se perder dentro. Aquele labirinto lá fora, aquela sala vazia, eu, você, e todas as histórias do mundo ao nosso redor. A sua voz, o seu sorriso e, eu ainda não sabia, mas aquele seria o melhor dia da minha vida.