quinta-feira, 24 de maio de 2012

Feliz dezenove(ainda, apenas)!

Lá estava ela vestindo preto, deixando que o tecido desenhasse as formas esbeltas do seu corpo. Dizem por aí que preto faz emagrecer, mas para ela ia muito além disso, escondendo muito mais do que excessos de gordura, fazendo jus ao ar de mistério que já lhe era de natureza. Maquiagem pronta, cobrindo as marcas de expressão que insistiam em aparecer, em despeito das suas tímidas dezenove (apenas, sorria enquanto eles ainda dizem "apenas") velinhas em cima do bolo. Bem feita, demarcada e pesada, porém na medida certa para destacar aqueles olhos enormes e fundos e, talvez por isso, hipnotizantes. Boca nem vermelha nem vinho, mas nua, que de tão bem contornada e volumosa – também na medida certa – já chamava suficiente atenção assim: nua. Cabelos alongados até o cóccix imitando ventania, dançando de um canto a outro, apesar da não existência de vento algum no salão – talvez, fazendo jus ao espaço e a ocasião, imitassem uma dança elegante, como valsa ou qualquer coisa parecida. Talvez tango. Ela soava mais como tango 
Não havia muito sorriso – ela mesma julgava que tal expressão não combinava muito com seu rosto, e quando havia, eram ligeiros, sem dentes, às vezes apenas de canto de boca, o que não os tornava menos encantadores. Isto é, para aqueles que se deixavam encantar, para os observadores dados à decodificação e, principalmente, para os não temerosos de se perderem naquela doce face, gestos, danças e artimanhas (algumas vinham naturalmente, a maioria era calculada e intencional) daquela garota (mulher?) labirinto -. Todos os convidados, e mais um pouco, estavam lá – ninguém jamais perderia tal evento! –. Entre rostos instantaneamente reconhecidos, rostos que não lhe recobravam a memória nem de longe, e outros que encontravam suas lembranças vaga e vagarosamente, todos estavam lá. Ela estava incrivelmente linda e, acredite em mim, não era tão menos linda sem todos aqueles apetrechos, pinturas e enfeites. Não mesmo. Era labirinto não só por seus mistérios e feitiços, mas principalmente, já a primeira vista, por tamanha beleza. 
Estava incrivelmente linda, e apesar de não fazer questão de nada daquilo, pensou, por fim, que pudesse fazer vontade às outras pessoas, as mesmas que relutavam "não seja boba, você é deslumbrante! E uma data tão importante não merece nada menos do que uma festa daquelas em comemoração!" Sim, ela gostava de festas. Mas do tipo que não eram, nem de longe, nada parecidas com a que – pelo tom de incontida animação – pretendiam dar. Mas tudo bem, era o seu dia e estava ali: linda como sempre e mais deslumbrante do que o de costume. Agora bastava respirar fundo e continuar andando, continuar cumprimentando a todos, com seu sorriso sem dentes, respondendo aos sorrisos alheios que, por algum motivo que ela desconhecia, pareciam se esforçar para se mostrarem radiantes, apesar de ainda amarelos – como ela, mais esperta que a maioria ali presente, conseguia perceber . Nada fazia sentido, todas aquelas pessoas e ela – que apesar de todas aquelas vozes lhe repetindo incessantemente "você está esplendidamente linda, querida!" –  não sentia vontade alguma de sorrir diferente do sorriso vazio e estático que tinha agora. Mas tudo bem, apenas continue. Ignore os rostos desconhecidos, e os conhecidos também, os cínicos e os desagradáveis – em verdade, podia contar três que não fossem absolutamente desagradáveis. Fez as contas. É, apenas três; que correspondiam à duas melhores amigas e o homem da sua vida, sentados juntos à sua esquerda numa grande mesa redonda e impecavelmente arrumada, com rosas ao centro e, também, cheia de risos ao redor –. Mas os rostos agradáveis em volta da mesa já não se concentravam mais nela. Haviam sim a admirado pouco tempo atrás, porém agora a atenção de todos se voltava à conversas tolas sobre assuntos cotidianos, observações rápidas sobre a festa e sobre quem se encontrava presente nela. Nada além disso.
Vamos lá, apenas sorria, apenas continue, e por favor, por Deus, faça como gente normal, se sinta como gente normal e goste disso como eles gostam. Aproveite. Saboreie! Não deve ser tão difícil assim.
Mas era. Tinham se tornado raras as sensações de abismo, desde que ele chegara – na verdade, muita coisa havia mudado pra melhor, desde então – porém, vez ou outra, ela ainda era pega desprevenida, e o chão sob seus pés delicados calçados sobre saltos altíssimos que simulavam extrema confiança, desaparecia de repente, quando menos esperava. Triste e sozinha. Olhar para todos aqueles rostos ao mesmo tempo, tantos desconhecidos, causava nela tontura e uma acidez no estômago que lhe subia até a garganta – ou talvez fossem os drinks que entornava mais rápido do que o que deveria, porém de forma delicada pra que não pudessem perceber seu leve desespero, na tentativa de relaxar e então, talvez, quem sabe, dar a eles os sorrisos um pouco mais largos de que tanto pareciam precisar –. A sensação era a de olhar para dentro de si mesma e não entender, da mesma forma que não compreendia o que aquelas pessoas faziam ali – então era isso? Completara dezenove anos e todo mundo de quem nunca ouvia falar de repente estava ali, parecendo se importar. A troco de quê? Qual o ponto? –. Mas não havia ponto nem significado, motivo, razão, ainda que tivesse já gastado certo tempo em longos goles, em busca de solução. Triste e sozinha. Agora a esperança de que se sentisse bem começava a se dissipar, e a voz em sua cabeça repetindo que tudo estava sob controle parecia mais mentirosa do que nunca. Não havia nada sob controle ali, apenas um tsunami de confusão dentro dela, em stand by.
Finalmente, e só então, lhe ocorreu a ideia de estar ficando mais velha, e a frase automática ecoando na sua cabeça: eles dizem que a tendência é piorar... é o que eles dizem. Um embrulho no estômago. Uma vontade enorme de vomitar a vida. E isso porque tinha agora "ainda dezenove", "apenas dezenove". Agora então sorria, sorria daquela falta de sentido em tudo, de sua confusão secreta, de seu desespero oculto. Sorria riso largo, quase radiante, se não parecesse um tanto insano, sarcástico, triste. Se não parecesse um tanto riso de quem sabe que depois do fim de festa e salão vazio não restaria mais nada. Toda a glória sumiria de repente, toda a mentira seria descontada e contada novamente em alguma ocasião seguinte, oportuna e conveniente, e nada de bom esperava por ela naquela noite. Nada além de rímel escorrendo pela cara, mais rápido do que o que ela conseguiria limpar, maquiagem borrada, um pouco mais de álcool e quarto vazio de hotel. E nada além dela, que apesar de ainda estupidamente linda, era também triste e sozinha, como sempre foi e como sempre seria, não importava quantas pessoas fossem somadas mais cedo no meio do salão. 

sexta-feira, 16 de março de 2012

Sunshine



Ela acordou numa manhã pacífica de domingo, sem saber se era um sonho. Olhou para o lado e sorriu docilmente ao pensar em como poderia passar uma eternidade somente observando-o dormir. No silêncio da vizinhança que também dormia, na paz exalada pelo sol que, tímido, começava a cortar a janela com seus primeiros raios alaranjados do dia, ela pensava em como o tempo havia passado rápido ao lado dele sem que ela nem ao menos sentisse, como se, de tão bom, tudo escorresse por entre seus dedos, mais rápido do que todo o proveito que ela poderia vir a tirar. Era tudo tão leve que as horas viravam segundos e os meses viravam dias, e todas as coisas que haviam vivido nesse muito e pouco tempo rodavam lentamente como um filme em sua cabeça. Todos os risos, as brincadeira, as brigas bobas que não duravam nem horas, todas as cenas, algumas em câmera lenta, outras em flashes mais agitados... Todas as coisas. Acha que não, ele não era um sonho.
De início, é claro, ela estranhou tamanha paz, tamanho encaixe e perfeição. Algo tinha de sair errado. Mas já se passaram tantos meses, e nada. Nada de mentiras ou decepções. Nada de surpresas ruins ou descobertas amargas. Nada além da tal felicidade, e como essa palavra a assustava! Assustava-a tamanha felicidade, surpreendia-a tamanha paciência vinda dele, que, em meio às inúmeras crises e complicações vindas dela, nunca havia perdido a doçura, nem mesmo se afastado ou reclamado. Pelo contrário, envolvia-a em seus braços com todo o carinho e cuidado de quem abraça o próprio mundo. É, talvez ele fosse mesmo um sonho. Ele a havia ensinado a amar, da maneira mais simples que se pode amar alguém  se é que amor e simplicidade podem aparecer juntos numa mesma frase  e ao lado dele ela tem um dos poucos momentos em que se sente completamente bem, sem a sensação de falta e vazio, antes tão bem conhecida, ou de dor e sofrimento se aproximando.
Ela sabe que fez a coisa certa ao ter escolhido ficar. Ela sempre soube que seria a escolha correta, mesmo com todo o imenso medo do início. Bem lá no fundo, os dois sabiam que deveriam, que haviam sido preparados um para o outro, que acaso e destino haviam conspirado juntos para que chegassem onde estavam agora. Curiosa, ela se perguntava sobre o porquê de ter recebido tal presente, e a intrigava a idéia a respeito de ter feito algo em merecimento do mesmo, mas era passageiro o medo e o pequeno receio íntimo por ter ganhado o que pouquíssimas pessoas têm, e o que o restante passa a vida inteira a desejar.
Deitou ao lado dele, sentindo a respiração macia em sua pele, aconchegando-se bem perto do seu corpo quente envolto em lençóis de algodão. Sim, ele é um sonho. O mais perfeito entre todos os outros sonhos. E ela sabe que a única parte triste da histórica é acordar. Acordar e chegar a hora de se despedir. Acordar e voltarem ambos para suas realidades que transbordam de saudades. Acordar e ter somente o cheiro dele como lembrança, vivo, mergulhado em cada fibra dos tecidos de suas roupas, em cada fio de cabelo dela.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Pausa





Pausa. Todos os relógios parados. Ela continua sob encantamento. Os calendários não são atualizados, já não é cedo nem tarde, não há o que se esperar nem pelo que se desesperar. Pausa. Ela observa as pessoas na rua, indo e vindo, indo e voltando, e de novo e de novo, o tempo passando, só que sem o velho tique taque de sempre. Sem nada. Só o saber que o tempo passa. Pausa do querer, do esperar. Todos os relógios parados. O presente é igual ao passado e o futuro inexistente, tudo porque ninguém atualiza os calendários. Os dias são iguais, como se nenhuma história antes dessa houvesse sido contada, tudo porque os livros foram queimados. Todos eles. Todos os calendários programados, os livros e os relógios sabotados, até os jornais e a televisão. Aliás, não há mais jornais. Ninguém escreve nada. Na televisão é sempre a mesma fita de vídeo cassete. Aquela. A que ninguém conhece. A música toca? Toca. Mas é confusa, ninguém entende a letra. Mas continua tocando. E o relógio continua. Continua pausado, mas continua alguma coisa. E tudo continua, pausado naquele espaço entre a pausa e o continua, que para ela significavam a mesma coisa, e ela continuava nessa contínua pausa eterna, continuava junto com os calendários, como a fita de vídeo cassete que ninguém conhece ou como a música que ninguém entende; continuava enquanto não havia nada além daquilo: pausa.