sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O buraco

Então eu acordo (e não há pelo que acordar), então eu acordo e me certifico de que o buraco está lá. Então não foi apenas uma sensação causada pela sonolência de outrora. Está lá. A sua presença é a única no quarto. Está lá, vivo, latejante, pulsante (gosto de usar essa palavra para designar quase tudo o que parte de mim... latejante. Me ocorre que talvez essa seja a melhor definição para minha existência).
Voltemos ao buraco.
Ele está lá. Percebo que sempre voltarei ao buraco, pois ele não parece ter pretensão de me deixar esquecer de que: ele está lá. Está quente, apesar de se parecer um pouco com um poço frio e úmido sem fim. (está quente, porque está vivo). Mas está seco, não úmido. Seco como... (seco como sangue coagulado). O buraco tem cheiro de sangue, tem gosto de morte. O gosto é amargo...
Pensando melhor, esse é o gosto da vida, não da morte. Tudo bem, eu não sei nada sobre o buraco além do fato de que ele existe, de modo que sou corrigida ao tentar descrevê-lo. Sim, eu já o conhecia antes, já o tinha avistado de relance em qualquer beco noturno nas andanças dessa vida. Eu já o tinha visto, mas nunca tão de perto, nunca tão cara a cara assim. Ele me intimida, é verdade, e é também verdadeiro o desconforto que sinto ao admitir tal fraqueza. Ele me intimida, apesar da tentativa de convencer-me da ideia de que deveríamos ser amigos. "Eu não quero ser amiga de um buraco!" digo a ele. "Não seria a ideia mais aconchegante do universo...".
Ele não se importa. Não parece sequer ter me ouvido, em verdade. O buraco é sórdido, é fatalista, como se não me restassem escolhas, opções... Ele tinha vindo para ficar. Sentia isso na forma como se impunha. Prepotente. É como se soubesse de tudo, de todos os meus segredos, e usasse cada um deles como uma ameaça contra mim. O buraco é sujo.
Acordei e me parecia que habitava em mim, no mesmo lugar de onde dizemos sentir amor, no mesmo lugar para o qual apontamos quando sentimos a dor de uma decepção. Parecia que havia escolhido aquele exato lugar para alojar-se e proliferar-se, como uma bactéria fatal à vida. Mas também me parecia que era eu que me encontrava dentro dele, completamente submersa na lama espessa ou no ar rarefeito de dentro do buraco. (Não tenho certeza a respeito da lama. Não tenho nem certeza sobre quem está dentro de quem, só que nada disso importava porque, de uma forma ou de outra, não iria embora de mim, e não me deixaria sair).
Acordei e senti melhor do que nunca. A presença era inconfundível. Tentei dormir novamente, fugir da constatação final que aguardava impacientemente por mim ao fim de um corredor imaginário, muito cumprido, cheio de braços, ou sentada numa cadeira de espera... No fundo do buraco. Pensei que o corredor pudesse ser o caminho para chegar até lá (não entendia muito bem o corredor). Conquistei mais duas horas de sono. Acordei novamente. Não havia sido um sonho, afinal. Ele permanecia lá, intacto. O buraco. Parecia perigoso. Perigoso ao ponto de quase despertar meus mecanismos de defesa. Tentei calcular o tempo e a distância, coisas necessárias a uma possível fuga, mas a voz do fundo do buraco era mais alta do que meus pensamentos.
Ele não me deixaria ir.
Com o tempo, ele me convenceria de que ele mesmo era o melhor lugar do mundo em que eu pudesse estar. Faria com que me acostumasse a ele, com fosse leal e não deixasse ninguém se aproximar... Faria até mesmo com que o adorasse. Ele me envolveria num abraço mórbido cheirando à derrota, e me faria pronunciar da minha própria boca o meu desejo iminente de ficar. (Mas eu lutaria, obviamente. É claro que sim!)
De súbito, percebo que a escuridão antes restrita ao buraco agora se espalhara por todo o quarto. De repente, o buraco já não era uma questão de residir em, ou de se estar dentro do. Havia se espalhado. Estava em todo lugar. Tive ímpetos de abandonar abruptamente meus carinhosos lençóis (que eram os responsáveis pelos únicos momentos de calor e aconchego que eu tinha em minha pobre vida, antes de o buraco chegar e acabar até com isso), imaginei-me descendo as escadas com a pressa impensada de uma pré-sonolência, apalpando a mesinha da sala de estar cegamente à procura das chaves de casa, abrindo a porta da frente, atravessando as ruas sem cautela, concluindo o percurso embaixo de um carro agora a pouco em movimento... Eu sabia que deveria, mas o buraco...
Tinha um sarcasmo no sorriso... Eu o vi. Tinha sinceridade que eu não encontrava em nenhuma pessoa.
Bem, pensei que talvez pudéssemos, de fato, ser amigos... O buraco e eu.
Ele é bom, no final das contas. Acho que quer me proteger.
Pelo menos, foi o que me disse.
Eu acreditei.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Sobre autodestruição (na mesa do bar)

Ele falou pra mim que o amor curava tudo e eu só pude dar uma boa gargalhada na hora. Que tipo de merda é essa? De onde ele tirou isso? Parecia que eu precisava lembrá-lo a todo o momento de que não era nenhuma criança. Minha alma tinha uns trezentos anos de estrada, se não mais. Não que eu fosse algum tipo de vampiro, pois tinha ouvido falar por aí que vampiros não sentem nada, e eu sentia muito. Senti tanto que cansei.
Ao fim de todas as minhas falas ele arrumava um jeito de introduzir um pensamento positivista, budista, e todos esses "istas" chatos pra caralho, o que me fez lembrar o porquê de eu detestar gente feliz, depois de tanto tempo sem bater papo com um sujeito desse tipo otimista. Os caras estão sempre fornecendo solução pra tudo, não se pode amaldiçoar nada na vida, como se sofrer fosse algo estritamente proibido. A religião não permite.
Eu disse pra ele que nenhuma dessas merdas que ele aprendeu na televisão ou em qualquer outro lugar, tanto faz, nada disso existia. Que ele trocasse esses livros sagrados por poesia simbolista que era de muito mais valia. Eu disse que esse vômito preso na boca do meu estômago, isso sim era realidade. Isso eu iria levar a qualquer lugar na vida.
Refletiu um pouco, parecendo admirado, e depois, recobrando a memória, lembrou dos meus escritos. Me perguntou onde eu achava inspiração para escrever coisas tão mórbidas. Eu respondi "dos meus sonhos". Ele perguntou como eu dormia com aquilo. Respondi que com o tempo você aprende a amar tudo do que não consegue se livrar. Ele assentiu.
Talvez tenha se lembrado de seus próprios pesadelos, reais ou não... Todos os temos.
Disse que eu enlouqueceria. Respondi que enlouqueço sim, todos os dias. Me perguntou então porque que eu não desistia, pois parecia o óbvio a se fazer, e eu disse que já havia desistido. Que esperança eu só tinha agora no dia em que eu iria finalmente acordar com coragem de espalhar meus miolos pela parede da sala, de frente para a porta de entrada, e deixar tudo lá, como de recordação. Fé eu só tinha nisso. Perguntei se vinte anos ainda era idade boa pra suicídio, se ainda soaria romântico, porque Bukowski disse que quando se é jovem, tudo bem, mas quando se é velho, já não se tem mais o que matar, o que pareceria ridículo então de se fazer, e eu queria que fosse tudo bem, aprovado por Buk, jovial como Werther e os meninos da Alemanha do século dezoito. Era tudo ou nada, agora ou nunca, na faixa dos vinte. Ele riu de mim, como se sim, eu fosse a criança que recusava ser. É que ele é dessas pessoas normais, dessas que levam a morte a sério demais até pra falar sobre ela. Justo da morte esses caras não são capazes de falar! Justo da única coisa real nessa porra de mundo!
Eu disse que a diferença entre mim e o resto das pessoas era que eu aceitava minha loucura sem espernear. Eu não precisava de todas essas ilusões criadas com um punhado de imaginação e desespero de quem não sabe de onde vem nem pra onde vai. Eu aceitava minha inutilidade, minha ignorância. Eu não precisava de céu e inferno porque tudo eu vivi aqui. Não precisava de um deus porque a solidão era a minha verdade, nem de doutrinas e terços porque, se a merda ficasse mais suja do que o que já era, a última coisa que faria seria recorrer a alguém invisível. Eu estaria muito ocupado resolvendo tudo de forma prática, boom! Assumindo as rédeas da situação. Quero dizer, a vida era minha, e o direito de escolher ficar com ela ou não, era só meu. Correto?
Ele ficou em silêncio. Eu apreciei. As pessoas sempre ficam em silêncio quando se deparam com a verdade. Depois de cinco minutos, me pronunciei "é disso que eu estou falando... o silêncio contém toda a verdade do mundo, é toda a razão, porque ninguém sabe de nada, e isso deve ser tudo que se tem a dizer... o silêncio, saca?".
O silêncio continuou. Eu tive bastante tempo pra refletir, de modo que me lembrei de como as pessoas estavam sempre me perguntando pra onde eu iria com tamanha violência. Diziam que eu não chegaria muito longe assim. Mal sabiam elas que a distância pouco me importava. Na verdade, quanto mais curta fosse, melhor. A distância. Mas o fato é que eu tinha mesmo essa ideia fixa de desconstrução. Sempre tive. Eu sabotava a tudo e todos e principalmente a mim. Era como passar um dia em frente a um espelho maquiando um belo rosto só pra navalhá-lo por inteiro ao fim da noite. Era isso que eu fazia com a minha vida. Ou pelo menos tentava. Era essa ideia autodestrutiva latente que não me abandonava, como se a cada tijolo empilhado, eu tivesse obrigação moral, natural, de derrubar mais dois. Era anormal, sobre-humano, perturbador, cansativo...
Mas eu ainda preferia isso a ser igual a todos eles.