quarta-feira, 27 de julho de 2011

Onde eu guardo você




Eu não sei com qual endereço devo preencher os quadradinhos no verso do envelope, nem quais palavras eu devo usar para escrever a essa nova pessoa que você deve ter se tornado, provavelmente tão estranho a mim. E nada me importa porque o que eu sei é que essa carta por você jamais será lida, exatamente como as outras mais antigas que envelhecem no fundo da gaveta cor de marfim. Se fosse essa uma de nossas velhas conversas, nessa parte eu deveria perguntar como você está, como vãos os seus pais, seus planos, e até mesmo como anda seu coração. Aí você responderia qualquer coisa sem muita verdade, como fazem os conhecidos que se esbarram em qualquer lugar e se cumprimentam com aquela certa pressa cotidiana. Você faria todas as minhas perguntas de volta a mim, como que por gentileza e educação. Então eu procuraria em meio ao meu arquivo de coisas-entediantes-do-dia-a-dia algo que soasse feliz ou, no mínimo, interessante pra te contar, sem muita intensidade, só para dar continuidade a nossa conversa. Mas sendo essa uma carta e não uma conversa, eu deveria escrever sobre mim, escrever até cansar, te contar coisas novas, coisas bonitas da minha nova vida, da qual você se tornou tão distante. Eu teria de inventar tudo, como fazem os ex amantes, inventar alegrias que na verdade não existem e que só existiam quando os dois ainda estavam juntos. Inventar e nunca deixar transparecer a tristeza causada pela falta que um faz ao outro. Eu até gosto dessa palavra: inventar. Mas deixo isso pros meus momentos de escritora mirabolante que penso que sou, porque com você, eu nunca precisei de nada disso. Tendo de escrever sobre mim, não sei sobre o que escreveria. Sobre tristeza já falei em outras cartas. Sobre amargura, também. Sobre amor, sobre falta, sobre saudade e todas as coisas que já nem valem mais à pena serem ditas – porque não há mais você para ouvir – já escrevi. Eu já cansei um pouco de ser tão melosa, já cansei de sentir tanto assim por você; dos pensamentos incessantes, dos relatos em papel; e já cansei, principalmente, das várias últimas lágrimas que chorei prometendo a mim mesma que seriam as últimas, e das inúmeras folhas de papel que gastei falando sobre você, também jurando serem as últimas. Se eu soubesse seu endereço, se eu soubesse quem é esse novo você, se eu soubesse que esse novo você ainda se interessaria pelas minhas conversas fiadas e pelos meus dramas sem fim, eu contaria a esse novo alguém como tenho me afundado rápido demais. Eu perguntaria sem mais rodeios: quer saber a verdade? Então aqui vai: eu tenho me envenenado pouco a pouco pra tentar matar você dentro de mim. O que é confuso, porque você é a melhor coisa que já me aconteceu. E eu ainda te amo. Mas eu também odeio isso. Sim, sim, eu confessaria que me enganei quando pensei que o tempo poderia tirar você de mim. Perdi as contas de quantos dias passei esperando somente por aquele dia em que eu acordaria pela manhã, abriria meus olhos e já não me lembraria de você. Os dias que fiquei só imaginando e esperando que a ciência inventasse algum tipo de nova droga que pudesse apagar nossas memórias. Os dias que perdi me enganando e tentando enganar a todo mundo. Agora eu vejo que não há forma de te tirar de mim, e que também não há motivo para desejar tal coisa. Eu achei que o nosso pra sempre havia terminado no momento em que seguimos caminhos diferentes, mas agora eu vejo que o pra sempre não se referia a andarmos juntos a todo instante, mas sim a essa lembrança, essa presença aqui dentro de mim, essas memórias e tudo, tudo, tudo que você me deu. Tudo é pra sempre. Se você quisesse ainda ouvir, era o que eu te diria. Se eu ainda tivesse o seu endereço, se eu ainda soubesse seu nome, se nós não tivéssemos perdido a trilha de volta pelos caminhos diferentes aos quais seguimos, eu te enviaria essa carta, eu te diria só essa última coisa, mesmo sabendo que quando se trata de você, a última lágrima nunca é última, nem a última vez, nem o último pedaço de papel: eu queria que você soubesse que o único lugar bonito que sobrou dentro de mim, é onde eu guardo você.

domingo, 17 de julho de 2011

Sem título

No telefone eu senti um tonzinho de ameaça: que horas você passa lá em casa? Quero conversar. Ai meu deus, conversar. Parece que a todo instante eu estou voltando no tempo, quando meu pai se sentava de frente pra mim e gastava horas em discursos entediantes pra me alertar de como garotinhos podiam ser malvados – mal sabendo ele que eu me tornaria a malvada da história –. Sentada na sua minúscula mesa de jantar, coberta com a toalha xadrez que a sua mãe comprou – sim, claro, porque ela não poderia sobreviver sem visitar e supervisionar seu apartamento todo santo final de semana – eu estou tranqüila, pernas cruzadas, olhando em direção à enorme janela de vidro que quase me permite enxergar os carros passando depressa lá embaixo. Eu adoro essa janela, e a visão dos outros prédios. Dá pra ver as pessoas em seus afazeres e isso era o que me distraia toda vez que eu deitava no seu sofá te esperando chegar da faculdade, sem ter nada de interessante pra fazer. Você me serve café na minha xícara velha – a que eu escolhi de lá de casa pra trazer e deixar aqui, porque de todas as outras, essa é a que menos gosto da cor –, sentando de frente pra mim, com um ar cansado, fingindo apreciar a mesma vista que eu somente na desculpa de fazer voltas até chegar ao que interessa –. Você me olha com aquela expressão de pedido de socorro, como que um sinal pra que eu pergunte: e então... você disse que queria conversar? Mas eu nem vou fazer isso. Por mim está ótimo em só sentar aqui e fingir que a vida é boa. O meu silêncio continua, salvo pelo tilintar do pires na xícara que agora eu agarro com as minhas duas mãos, pondo algo entre nós dois porque assim me dá a sensação de estar protegida. Eu queria falar sobre nós dois. Ai meu deus, eu já tinha passado por isso vezes suficientes para entender que “quero falar sobre nós dois” na verdade significa “preciso reclamar de você” – e agora vai começar o drama, sim porque vocês garotos também conseguem quando o querem –. Considerando as minhas outras experiências e o fato de que eu faço tudo direitinho, sem o incomodar muito – tipo sem crise de ciúmes, sem telefonemas incessantes, sem tantas cobranças etc e tal – eu podia prever o que estava por vir. Eu não sei, você é tão distante... às vezes parece que você não se importa... Era sempre o mesmo texto, exatamente igual. Se eu não ligar, você não liga... eu não sinto você aqui. Aí vem aquela pausa, como que me oferecendo uma chance de defesa, mas eu não tinha do que me defender. Não tinha e nem queria. Ele estava certo. Ficou me olhando fixamente, esperando reação, sem resposta. Sabe, eu não quero só o seu corpo, o seu rosto bonito ou só o seu cheiro no meu travesseiro. Eu quero alguém por inteiro, e não essa pessoa oca que eu enxergo quando olho pra você. O barulho do trânsito me distraia da voz dele, mesmo assim eu percebi que havia chegado o ponto da conversa onde o locutor fica meio emocional. É tudo tão mecânico... eu queria que você falasse como se sente, não sei, pelo menos de vez em quando, como as garotas normais. Esse é o problema. Sentir já é tão difícil: ele exige que eu sinta e que eu ainda por cima fale sobre isso! Eu não sabia o que responder. Eu até poderia tentar uma conversa produtiva, uma discussão de relacionamento, como fazem os casais normais, mas eu já estava cansada demais pra isso. E não era cansada por mais um longo dia de estudo e trabalho. Era cansada dessa coisa que todo mundo tem de me cobrar agir como gente normal. Eu olhei apática nos olhos dele, foi sem querer, eu queria tentar parecer me importar, mas achei mais fácil entornar o café que nem água, pra me ocupar, na esperança dele continuar a falar sem me exigir resposta, até que aquela sessão de tortura acabasse e eu pudesse ir pra casa, pro meu quarto, sozinha, que é como fico melhor. Silêncio do lado de lá da mesa. Silêncio do lado de cá. Como um jogo de ping-pong, só que nulo, sem pontos, ninguém marca nada. Eu começava a sentir um leve desconforto, apenas como resultado do grande desconforto dele. Porque por mim, eu sentia mesmo muito pouco. Do que você tem medo, ein? Porque você se defende tanto? Eu quis dizer que já fazia sessões de terapia, obrigada. Mas toda vez que alguém me pergunta do que eu tenho medo, é assim, eu desvio o olhar, é de tanta coisa! É de tudo. Ou sei lá, deve ser só de mim mesma. Fiquei encarando a xícara cor de salmon e o café com leite amarronzado: tudo sem graça, imitando a mim. Eu amo você, sabe. Mas é tudo tão difícil com você... Difícil mesmo é encontrar resposta em defesa de uma acusação que, você sabe, é correta. E mais difícil ainda é procurar por essa resposta quando nem se faz questão de usá-la. Tomei mais um gole da coisa sem graça, tentando evitar esse momento aqui: porque você não me deixa, então? De fato, você merece uma garota mais “mentalmente” saudável. Falei sem emoção, e por isso mesmo soou sincero, tão limpo que nem tinha na voz o sarcasmo de sempre nem nada. Levantou e foi até a cozinha, balançando a cabeça de um lado pro outro, negativamente, gesticulando implicitamente um “você não tem jeito, mesmo”. Trouxe a garrafa térmica – também arranjada pela mãe –, repondo o café nas xícaras vazias – e eu não pude evitar outra comparação da xícara salmon com a sua própria dona –. Tudo é tão difícil com você, te deixar não seria diferente... Cansou-se, se largando agora sentado mais próximo de mim à mesa, tentando se contentar somente com aquele café preto pra hoje; e eu que já estava cansada há tempos, percebi que ficaríamos ali até terminar tudo o que restava na garrafa, e depois os beijos de sempre, e então eu iria embora, descansar ao fim de mais um dia, sobrevivendo a mais uma dr frustrada e engolindo a rotina de mais um quase-amor desastroso. E amanhã, tudo de novo.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

The girl and the round mirror

Once upon a time there was a little girl who lived in a dark and huge wood. She lived there alone and her only company was an old round mirror. She liked to think of it as her best friend. When she looked at the mirror she couldn’t see anything but small flashes of light and it never crossed her mind it was supposed to show an image, because it was like that since forever and she didn’t know any other mirrors. The little girl never really liked that place. Everything around there used to hurt her. The trunks of the trees were too rough for her to hug them. The roses had too many thorns for her to touch. The waterfall had too strong waters for the girl’s littleness. The sand was too hot during the day and too cold at night for her to stand it, therefore she could never take off her shoes, not even once in a while. Some nights the shadows which lived behind the trees didn’t let the little girl sleep. Some days she just sat and cried all day long. In these days, the mirror that was always in her hand or inside her dress’ pocket began to shine very strongly reflecting the sunlight in the girl’s face, as if it wanted to make her smile a little bit. When this used to happen, the girl remembered of the sun and looked toward the mountains, wondering what might exist beyond the wood. One night, the little girl was so scared, so sick and tired and in such pain that she considered letting the strong waters of the waterfall take her away. She took off her clothes and shoes, following the sound of the waterfall, while the ice-cold sand burned her feet. When she was about to jump, the mirror was lit with a light that was enough to illuminate the whole forest. She jumped back in fright and then she bent down, grabbing the mirror in her hand. When she looked at it, the girl could see her own face in the old mirror, and it said: “little girl, do not worry…” At first she got scared but then she was impressed with how beautiful that image was and with the way it came to life. “Do no harm to yourself because one day you are going to find a way out of this place. You’re going to be free, and when this day comes, you’re going to need no trees, no roses, and no waterfalls to make you happy. Nothing and no one to make you happy… no one but yourself.”

sábado, 9 de julho de 2011

Pode me chamar de estrago




De novo e como sempre: sua euforia não durava mais de quinze minutos. Não sabia se era feliz, com alguns instantes de desamparo, ou se era triste, com alguns minutos de falso divertimento. Há pouco tempo ria, fumava, falava alto e agitadamente. Tocava as pessoas, cumprimentava conhecidos, observava como uns e outros estavam vestidos e se a decoração da boate tinha inovado hoje. Dançava feito louca, como se o mundo fosse acabar nos próximos instantes. Horas depois acordava do lapso de ânimo, com a antiga sensação de não saber onde está e o porquê de estar ali. Olhava ao redor, via as pessoas se divertindo, via os rostos bonitos, os toques e carícias, a juventude ali, tão limpa, tão exposta. Tentava recuperar o ânimo escapulido, sem sucesso. Tentava fazer seu caminho até o banheiro, provavelmente já muito sujo a essa altura, assistindo à sua volta aquela gente que parecia tão verdadeiramente preenchida, tão viva  mal se sabia tão enganada . Entrou no banheiro masculino, supondo como o outro estaria cheio, evitando contato, evitando gente pra lhe atiçar perguntas sobre seu estado físico e emocional. Aliás, tinha mesmo essa tendência a evitar. Sua mente girava um pouco por causa de uns Martinis, embora não fosse fraca pro álcool. Diferente disso, era fraca pros sentimentos que habitavam dentro dela, eles sim causavam ressaca; e ressaca de anos. De repente se sentiu só, profundamente só, uma sensação estranha e desesperadora que só pode ser mais proximamente definida por uma sensação de não mais existir. Os sentimentos que ela tanto sufoca diariamente lhe escapavam, vindo à tona de um jeito mais forte do que o que ela podia controlar. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... Ecoava pela sua cabeça, se repetindo compassadamente. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... A música alta ecoava junto aos seus pensamentos embaralhados, o som esbarrando na porta e indo ao seu encontro. As batidas eletrônicas tentando puxá-la de volta à realidade, ao momento presente. Inútil. Ela já não estava mais ali. Havia se perdido, acontecia vez em quando. O que detestava mais nessas noites de suposta felicidade era justamente o medo, medo da felicidade. Medo porque o que está ali pode em instantes escapar, sumir talvez até mais facilmente do que a fumaça que lhe foge pela boca agora e se dissipa leve no ar. Ela odiava a rebeldia de suas lembranças, a dificuldade que elas tinham de obedecer suas ordens de ficarem exatamente lá: onde ficava tudo o que ela separava e trancafiava na caixinha de quero esquecer, preciso esquecer, e era violenta a forma como lhe atingiam. E era violenta a perda súbita da euforia que há pouco se encontrava ali, era violenta a solidão, as vozes na sua cabeça, era tudo violência suficientemente bruta e forte pra lhe derrubar ali, no chão daquele banheiro público e imundo, o que não lhe importava tanto: talvez fosse o chão tão imundo quanto era ela por dentro de si. Sentia vontade de chorar, não conseguia. Estava tudo tão preso, era toda tão cheia de não conseguir deixar as coisas saírem de dentro. Embora. Deixa ir. Não conseguia. Não sabia por que, não conseguia. Talvez porque fosse tão só. Só ela e esses fantasmas como companhia. Os olhos brilhavam de angústia, umedecidos, mas nada lhe corria o rosto, como se fosse vazia demais, até pra isso. É muita inflamação pra tão jovem coração. Veneno demais, ferida demais pra tão pouca vida. Alguns já tinham a percebido ali com olhar de estranheza, porém sem mais preocupações: todos chapados demais pra se importar. Jogada, se abandonando. Soa triste, mas era tão boa a sensação. Só ela e o chão. Sem ligar pra roupa se encardindo, sem ligar pras pessoas observando, eliminando toda a importância que se dá ao mundo, ao corpo, à lama, à gente, ao mundo. Todos aí fora, são tão sujos quanto eu, sem nem precisar sentar aqui nesse chão! O cigarro quase ao fim e agora começam a tocar uma de suas músicas favoritas, mas ela não se importa. Ela não está mais ali. Não há mais a porta por onde entrou como caminho de volta. Não há mais como engolir todo o lixo de volta e colocar no lugar a felicidadezinha micha do início de noite. Pelo menos não mais naquela noite. É mas talvez eles sejam felizes... Talvez eles sejam algo além de sujos. Algo além do que o que eu consigo ser. Um sujeito alto parado em sua direção, ela nem havia notado a hora em que chegou. “Ei, você tá legal?” Sua voz se atrasava em chegar até ela. “Precisa de ajuda?” Ele disse enquanto ia se aproximando devagar, cuidadoso. Ela não enxergava direito aquele sujeito borrado, quis pedir pra que ele parasse um pouco de girar. Não respondeu nada. Ele não voltou a perguntar. Em vez disso, agachou perto dela, procurando talvez forma de fazê-la mais confortável, pra se sentir útil. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... “Você quer que eu chame alguém ou que eu te leve em algum lugar?” Balançou a cabeça negativamente, mas logo em seguida lhe ocorreu a ideia de que explorar um desconhecido talvez fosse útil em lhe distrair daquele vazio sem fim. “Como você chama?” “Fernando. E você?” “Pode me chamar de estrago.”

quinta-feira, 7 de julho de 2011

P.S. devolve a minha camisa dos Ramones

Então ele gritou falhado, com rouquidão maior do que o normal por conta do longo tempo que já durava aquela conversa que de tão áspera, já ultrapassava os limites de uma rotineira briga de casal: eu vou embora! Eu sabia que já havia se decidido, vez que, por me conhecer, ele podia prever que nada ouviria de mim além de: como quiser! Também aos gritos, é claro. Mas ele não foi – pelo menos não naquela hora –, em vez disso, sentou na poltrona. Talvez pra tentar se acalmar; talvez por ainda ter coisas por dizer e depois disso a esperança(ou desespero) de resolvermos tudo de novo – ou de empurrarmos pra debaixo do tapete, porque resolver não combinava com a gente –; ou talvez pra ficar para mais, simplesmente por gostar de mexer na ferida. Nós dois gostávamos. Eu disse que sentia nojo, dele e de sua inutilidade. Que ele deveria arranjar algo que realmente importasse pra fazer, ao invés de ficar escrevendo aquelas rimas de Rock bastardas e incompletas – pras quais ninguém dava muita atenção – e se envenenando com álcool e fumaça todos os dias. Ele disse que eu me envenenava do mesmo jeito, e eu disse que pelo menos tinha motivos sólidos e que eu pelo menos estudava, eu fazia alguma coisa da vida. Ele concordou, mas disse que também era problema meu porque se eu estava ali, era por gostar de tudo que ele era. Eu continuei xingando-o e inventando acusações desconexas fingindo não ouvir seu último comentário, porque jamais admitiria que ele estava certo, sabendo que estava. Eu ficava cada vez mais irritada pelo sarcasmo na sua voz e pela calma que aparentava agora, sentado na poltrona, na minha poltrona, me assistindo andar de um lado para outro feito louca formulando dor em forma de palavras pra lhe atiçar na cara: e a propósito, na cama, você não me faz nem cócegas! De novo, aos berros. Ele me olhava com olhar de pena e desprezo, provavelmente refletindo sobre o quão baixa eu podia ser só por raiva. Ele disse que era mentira, e que eu sabia que era. E eu odiava o fato de ele estar certo mais uma vez. E quanto mais certo ele estava, menos eu queria parar; jamais me dou por vencida, e ele também sabe disso. Ele me chamava de ridícula e eu me sentia triunfal por me saber tão superior no quesito crueldade. Eu sempre fui a mais cruel. Sempre. Mas ele também sabia como me fazer ferver de ódio: bastava ficar mudo, desistir. Bom, ele teria que desistir pra que eu saísse como campeã, mas também me irritava profundamente seu silêncio. Em suma, eu só mesmo parava quando me dava por satisfeita. E se ele não mostrava reação, eu o provocava até o fim. Até quando eu decidisse que era o fim. “Você é ridícula”, ele disse num tom baixo, desistindo, me abandonando lá em agitação, sozinha. Sentado na minha poltrona ainda, a coluna desalinhada, quase deitado. “Você é ridícula”, desviou o olhar de mim no mesmo instante em que falava e seu tom diminuía a cada palavra, como que perdendo as forças. Agora ele encarava as mãos abandonadas, deitadas sobre o próprio jeans, fixamente, sem mais aquela esperança de sentar na poltrona e empurrarmos nossa sujeira pra debaixo do tapete. Eu fui até ele, impondo meu rosto bem próximo ao seu, e levantando um pouco os olhos ele podia ver no meu olhar que eu ainda não havia terminado. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, levantou. Foi em direção à cozinha, e eu o segui empurrando-o inutilmente, vez que seu corpo tinha quase o dobro do peso do meu. Segurei seu pulso e o levei até a parede, pressionando-o com a ponta das minhas unhas. Ele se livrou quase facilmente, com um pouco de força, o que não eliminou o fato de eu tê-lo machucado. Eu sabia que gostava de mim. Eu sabia porque ele podia ter dado o troco, ou simplesmente me empurrado para longe dele, pra respirar. Mas nada. Nenhum movimento em minha direção. Ele simplesmente virou o rosto, apanhando suas chaves em direção à porta. Já faz quase duas semanas. Nenhum sinal dele. Agora estou aqui, relembrando todos os detalhes daquela noite infantil, sentada na mesma poltrona, olhando para a folha bege dobrada sob o abajur e o chaveiro da farmácia ao lado, meu coração pulsando forte de medo e, pela primeira vez nesses treze dias, eu me arrependo de como deixamos as coisas chegarem àquele ponto. Eu sabia que ele não voltaria. Aquela fora a gota d’água, como todas as nossas brigas eram a gota d’água e mesmo assim sempre voltávamos a precisar um do outro, ainda quando jurávamos para nós mesmos que nos odiaríamos para sempre; porém nunca havíamos passado tanto tempo brigados, exceto pelo mês e meio em que rompemos, mas depois daquilo, nunca. Sabia que não voltaria e imaginei um bilhete de despedida, uma carta de palavras tristes e, por isso, bonitas; um desabafo, alguma declaração de amor com um “apesar de tudo, não dá mais”, ao fim. Custei a puxá-la de debaixo do abajur, mas quando o fiz, abri com pressa, sentindo minhas mãos estúpidas tremerem, e li, feito com aqueles garranchos desarranjados de compositor barato e músico canhoto:
“as chaves estão aqui.
P.S. devolve a minha camisa dos Ramones.”


sábado, 2 de julho de 2011

Slipping away

"Você tem que deixar essas coisas irem embora, sabe. Só deixa pra lá..." É bonitinho você olhando pro nada, franzindo a testa ao falar da vida como se entendesse muito, em meio aos seus dezenove e pouco de experiência. Se não faz que entende, é porque diz qualquer coisa só pra me amparar. O que é igualmente bonitinho, como tudo que vem de você. Me dá tanta paz só em você mexendo no violão; tanta paz o tapete do teu quarto; e você nem faz idéia do quão alto me leva essa rouquidão na tua voz. Nesses momentos em que só existe o nosso mundo é que eu percebo o quanto você me faz bem. E eu gosto do que a gente tem aqui, mesmo não sabendo o nome. E eu adoro essa sensação de nós sermos tão facilmente extintos como bolhinhas de sabão no ar; essa fragilidade de cristal pendulando entre nós dois; esse espaço tão grande que existe entre o lugar onde eu me deito e o lugar onde você senta pra tocar uma música, esse espaço grande que tudo o que pede é pra ser preenchido. Você nota as lágrimas chegando, mas nem se esforça mais em tentar entender o que eu tenho já que sabe que eu sou cheia desse drama. Mas dessa vez eu não choro só pelas dores que guardo e que só liberto na sua frente. Dessa vez tudo se mistura à descoberta repentina de que talvez eu te goste mais do que o gostar de dar umas risadas e soltar uns desabafos pra você; e talvez eu te queira mais do que uma tarde no final de semana pra colocar os papos em dia e suspeitar sobre a vida. Eu pensei em te dizer todas essas coisas, mas aí eu deixei pra lá. Eu me deixei pra lá e me deixei desaguar enquanto sua rouquidão me alimentava de toda falta que havia em mim, porque por enquanto tava bom assim, em só ouvir você cantar: I'm trying to make it through each day I'm falling apart now in every way I'm finding it harder to get by There's a hole in my heart And I don't know why Now I've come to realize… I'm slipping away.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Bloco 11, apartamento 25

Via mais claramente os muros acinzentados, à medida que ia me aproximando. Passou por mim um leve medo de ser barrado, no caso de você ter deixado meu nome na portaria com o aviso de me impedirem de entrar, caso eu aparecesse. Mas esse pensamento me fugiu rapidamente, no momento em que olhei para o porteiro e ele estava com o sorriso simpático de sempre, seguido do “boa noite” que significava que se lembrava de mim e que eu poderia seguir em frente, sem mais cerimônias. Sorri de volta um sorriso sem dentes, nervoso, sem prestar muita atenção. Subi as escadas com pressa de quem sabe que, se demora mais do que aquilo, desiste. Chego à sua porta ofegante e já nem sei mais se foram as escadas ou o que está por vir. Hesito um instante antes de tocar a capainha, preciso bolar o que falar. O quê não é o grande problema, mas como. Eu precisava te dizer como sou mentiroso quando nos esbarramos por aí e eu digo que estou bem. Como eu me sinto canalha começando e terminando relacionamentos semanais só porque não acho em outras nada de você. Queria dizer como sinto sua falta e como fica difícil de respirar quando, por força do hábito, disco seu número no celular sabendo que não há mais sentido em te ligar. Precisava falar do meu arrependimento por não ter feito nada enquanto te assistia partir. Eu deveria ter tentado mais, insistido, te segurado pelo braço, te proibido, te xingado, talvez até implorado, mas nada fiz. E me arrependo. Um turbilhão de pensamentos me invadem por segundo. Eu paro, tento respirar um pouco, e me dou conta do quão ridículo eu pareço ali, parado em frente à sua porta, as mãos tão suadas quanto as de um principiante momentos antes de encontrar seu amor colegial. Eu poderia ter te dito que te buscaria onde quer que você fosse, que te procuraria, que você não se livraria assim tão fácil. Poderia ter te acusado de ser medrosa por estar fugindo, porque fugindo as coisas são mais fáceis. Mas não o fiz, porque havia também o meu medo. Meu medo de falar sobre o que sinto, esse jogo todo de ter que esconder inseguranças um do outro. Eu precisava dizer como fui orgulhoso e inseguro, mas eu precisava dizer de um jeito esperto, pra assim não parecer tão emocional, você sabe. Eu acho que estou sendo idiota, que já deve ser um pouco tarde, vez que uma garota como você não fica muito tempo sem um novo cara. E me sinto ridículo, de novo. Agora eu me odeio por esses olhos lacrimejando que deixam aparecer aquilo que me esforço tanto pra esconder, e odeio essas pernas bambas e esse sangue borbulhando na veia e as palavras que ensaiei se afastando da minha mente na medida em que a velocidade das minhas batidas aumenta. Eu me arrependo no mesmo instante em que toco a campainha pela primeira vez. Tudo foge da minha cabeça e eu não tenho a mínima noção do que vai ser se você abrir essa porta agora. Eu toco a campainha pela segunda vez e me arrependo de não ter esperado mais um pouco no intuito de não parecer tão desesperado. Agora eu já não tenho mais como segurar as lágrimas que me escaparam só em imaginar você abrindo a porta, você nas suas pantufas e seu pijama de bolinhas roxas. Eu penso em descer as escadas correndo e fingir que nada aconteceu, mas agora já é tarde, já deve haver alguém vindo, e isso seria coisa de criança  porque, claro, eu na sua porta aos prantos e morrendo de medo não soa nem um pouco infantil, imagina . 20:41, você já deveria ter chegado da aula de inglês. Talvez você esteja em alguma festa dançando, bebendo e se divertindo com outro cara. Ou talvez você esteja numa sala de cinema, como de praxe. E com outro cara. De repente me veio um pouco mais de medo, só que dessa vez foi o de ter te perdido pra sempre. Eu me recomponho, imaginando que agora alguém vá abrir a porta: ela não está. Quer deixar recado? Esperar? Passar outra hora? Nenhuma das alternativas. Passado esse surto de coragem, eu nunca conseguiria te dizer todas as coisas que ensaiei. E mesmo que eu quisesse deixar recado, além disso não fazer o menor sentido, eu sei como na sua casa ninguém se lembra de cumprir com esse pedido. Com já muito pouco restando de esperança, eu insisto por uma terceira vez. E ainda não há som nem sinal algum de que alguém venha até mim. Eu olhei à minha volta e tudo parecia tão abandonado. As escadas vazias, o barulho dos televisores baixinho vindo de dentro dos apartamentos vizinhos, as pessoas trancadas. Eu abandonado. Só então eu me convenci de que não havia ninguém em casa. Eu me conformo e até sinto uma pontinha de alívio por ter me livrado dessa, quando a minha razão consegue falar mais alto  você sabe, fugir é mais sensato . Eu sinto que é melhor eu me apressar pra evitar que você me pegue no flagra, caso você chegue de onde quer que você esteja. E assim, você jamais vai saber sobre a cena deplorável dessa noite. Não tem ninguém pra te dizer que eu estive lá, que eu procurei por você, e nunca vai te passar pela cabeça todas as coisas que eu tinha pra te dizer. Volto a guardar tudo pra mim e a única coisa que me resta, tendo esse meu orgulho vindo de novo à tona, é tentar esquecer o vazio que a sua falta me traz. E você, que tanto reclamava da minha falta de sensibilidade, jamais vai saber das lágrimas que chorei só pela ansiedade de falar dos meus sentimentos pra você. Ninguém vai te dizer como eu paguei de pirralho, nesse andar abandonado, esperando você abrir a porta, com os meus sentimentos que tanto escondi, todos reunidos pra te mostrar, e minha esperança toda atada ao simples fato de você atender a capainha. Ninguém em casa.