sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O buraco

Então eu acordo (e não há pelo que acordar), então eu acordo e me certifico de que o buraco está lá. Então não foi apenas uma sensação causada pela sonolência de outrora. Está lá. A sua presença é a única no quarto. Está lá, vivo, latejante, pulsante (gosto de usar essa palavra para designar quase tudo o que parte de mim... latejante. Me ocorre que talvez essa seja a melhor definição para minha existência).
Voltemos ao buraco.
Ele está lá. Percebo que sempre voltarei ao buraco, pois ele não parece ter pretensão de me deixar esquecer de que: ele está lá. Está quente, apesar de se parecer um pouco com um poço frio e úmido sem fim. (está quente, porque está vivo). Mas está seco, não úmido. Seco como... (seco como sangue coagulado). O buraco tem cheiro de sangue, tem gosto de morte. O gosto é amargo...
Pensando melhor, esse é o gosto da vida, não da morte. Tudo bem, eu não sei nada sobre o buraco além do fato de que ele existe, de modo que sou corrigida ao tentar descrevê-lo. Sim, eu já o conhecia antes, já o tinha avistado de relance em qualquer beco noturno nas andanças dessa vida. Eu já o tinha visto, mas nunca tão de perto, nunca tão cara a cara assim. Ele me intimida, é verdade, e é também verdadeiro o desconforto que sinto ao admitir tal fraqueza. Ele me intimida, apesar da tentativa de convencer-me da ideia de que deveríamos ser amigos. "Eu não quero ser amiga de um buraco!" digo a ele. "Não seria a ideia mais aconchegante do universo...".
Ele não se importa. Não parece sequer ter me ouvido, em verdade. O buraco é sórdido, é fatalista, como se não me restassem escolhas, opções... Ele tinha vindo para ficar. Sentia isso na forma como se impunha. Prepotente. É como se soubesse de tudo, de todos os meus segredos, e usasse cada um deles como uma ameaça contra mim. O buraco é sujo.
Acordei e me parecia que habitava em mim, no mesmo lugar de onde dizemos sentir amor, no mesmo lugar para o qual apontamos quando sentimos a dor de uma decepção. Parecia que havia escolhido aquele exato lugar para alojar-se e proliferar-se, como uma bactéria fatal à vida. Mas também me parecia que era eu que me encontrava dentro dele, completamente submersa na lama espessa ou no ar rarefeito de dentro do buraco. (Não tenho certeza a respeito da lama. Não tenho nem certeza sobre quem está dentro de quem, só que nada disso importava porque, de uma forma ou de outra, não iria embora de mim, e não me deixaria sair).
Acordei e senti melhor do que nunca. A presença era inconfundível. Tentei dormir novamente, fugir da constatação final que aguardava impacientemente por mim ao fim de um corredor imaginário, muito cumprido, cheio de braços, ou sentada numa cadeira de espera... No fundo do buraco. Pensei que o corredor pudesse ser o caminho para chegar até lá (não entendia muito bem o corredor). Conquistei mais duas horas de sono. Acordei novamente. Não havia sido um sonho, afinal. Ele permanecia lá, intacto. O buraco. Parecia perigoso. Perigoso ao ponto de quase despertar meus mecanismos de defesa. Tentei calcular o tempo e a distância, coisas necessárias a uma possível fuga, mas a voz do fundo do buraco era mais alta do que meus pensamentos.
Ele não me deixaria ir.
Com o tempo, ele me convenceria de que ele mesmo era o melhor lugar do mundo em que eu pudesse estar. Faria com que me acostumasse a ele, com fosse leal e não deixasse ninguém se aproximar... Faria até mesmo com que o adorasse. Ele me envolveria num abraço mórbido cheirando à derrota, e me faria pronunciar da minha própria boca o meu desejo iminente de ficar. (Mas eu lutaria, obviamente. É claro que sim!)
De súbito, percebo que a escuridão antes restrita ao buraco agora se espalhara por todo o quarto. De repente, o buraco já não era uma questão de residir em, ou de se estar dentro do. Havia se espalhado. Estava em todo lugar. Tive ímpetos de abandonar abruptamente meus carinhosos lençóis (que eram os responsáveis pelos únicos momentos de calor e aconchego que eu tinha em minha pobre vida, antes de o buraco chegar e acabar até com isso), imaginei-me descendo as escadas com a pressa impensada de uma pré-sonolência, apalpando a mesinha da sala de estar cegamente à procura das chaves de casa, abrindo a porta da frente, atravessando as ruas sem cautela, concluindo o percurso embaixo de um carro agora a pouco em movimento... Eu sabia que deveria, mas o buraco...
Tinha um sarcasmo no sorriso... Eu o vi. Tinha sinceridade que eu não encontrava em nenhuma pessoa.
Bem, pensei que talvez pudéssemos, de fato, ser amigos... O buraco e eu.
Ele é bom, no final das contas. Acho que quer me proteger.
Pelo menos, foi o que me disse.
Eu acreditei.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Sobre autodestruição (na mesa do bar)

Ele falou pra mim que o amor curava tudo e eu só pude dar uma boa gargalhada na hora. Que tipo de merda é essa? De onde ele tirou isso? Parecia que eu precisava lembrá-lo a todo o momento de que não era nenhuma criança. Minha alma tinha uns trezentos anos de estrada, se não mais. Não que eu fosse algum tipo de vampiro, pois tinha ouvido falar por aí que vampiros não sentem nada, e eu sentia muito. Senti tanto que cansei.
Ao fim de todas as minhas falas ele arrumava um jeito de introduzir um pensamento positivista, budista, e todos esses "istas" chatos pra caralho, o que me fez lembrar o porquê de eu detestar gente feliz, depois de tanto tempo sem bater papo com um sujeito desse tipo otimista. Os caras estão sempre fornecendo solução pra tudo, não se pode amaldiçoar nada na vida, como se sofrer fosse algo estritamente proibido. A religião não permite.
Eu disse pra ele que nenhuma dessas merdas que ele aprendeu na televisão ou em qualquer outro lugar, tanto faz, nada disso existia. Que ele trocasse esses livros sagrados por poesia simbolista que era de muito mais valia. Eu disse que esse vômito preso na boca do meu estômago, isso sim era realidade. Isso eu iria levar a qualquer lugar na vida.
Refletiu um pouco, parecendo admirado, e depois, recobrando a memória, lembrou dos meus escritos. Me perguntou onde eu achava inspiração para escrever coisas tão mórbidas. Eu respondi "dos meus sonhos". Ele perguntou como eu dormia com aquilo. Respondi que com o tempo você aprende a amar tudo do que não consegue se livrar. Ele assentiu.
Talvez tenha se lembrado de seus próprios pesadelos, reais ou não... Todos os temos.
Disse que eu enlouqueceria. Respondi que enlouqueço sim, todos os dias. Me perguntou então porque que eu não desistia, pois parecia o óbvio a se fazer, e eu disse que já havia desistido. Que esperança eu só tinha agora no dia em que eu iria finalmente acordar com coragem de espalhar meus miolos pela parede da sala, de frente para a porta de entrada, e deixar tudo lá, como de recordação. Fé eu só tinha nisso. Perguntei se vinte anos ainda era idade boa pra suicídio, se ainda soaria romântico, porque Bukowski disse que quando se é jovem, tudo bem, mas quando se é velho, já não se tem mais o que matar, o que pareceria ridículo então de se fazer, e eu queria que fosse tudo bem, aprovado por Buk, jovial como Werther e os meninos da Alemanha do século dezoito. Era tudo ou nada, agora ou nunca, na faixa dos vinte. Ele riu de mim, como se sim, eu fosse a criança que recusava ser. É que ele é dessas pessoas normais, dessas que levam a morte a sério demais até pra falar sobre ela. Justo da morte esses caras não são capazes de falar! Justo da única coisa real nessa porra de mundo!
Eu disse que a diferença entre mim e o resto das pessoas era que eu aceitava minha loucura sem espernear. Eu não precisava de todas essas ilusões criadas com um punhado de imaginação e desespero de quem não sabe de onde vem nem pra onde vai. Eu aceitava minha inutilidade, minha ignorância. Eu não precisava de céu e inferno porque tudo eu vivi aqui. Não precisava de um deus porque a solidão era a minha verdade, nem de doutrinas e terços porque, se a merda ficasse mais suja do que o que já era, a última coisa que faria seria recorrer a alguém invisível. Eu estaria muito ocupado resolvendo tudo de forma prática, boom! Assumindo as rédeas da situação. Quero dizer, a vida era minha, e o direito de escolher ficar com ela ou não, era só meu. Correto?
Ele ficou em silêncio. Eu apreciei. As pessoas sempre ficam em silêncio quando se deparam com a verdade. Depois de cinco minutos, me pronunciei "é disso que eu estou falando... o silêncio contém toda a verdade do mundo, é toda a razão, porque ninguém sabe de nada, e isso deve ser tudo que se tem a dizer... o silêncio, saca?".
O silêncio continuou. Eu tive bastante tempo pra refletir, de modo que me lembrei de como as pessoas estavam sempre me perguntando pra onde eu iria com tamanha violência. Diziam que eu não chegaria muito longe assim. Mal sabiam elas que a distância pouco me importava. Na verdade, quanto mais curta fosse, melhor. A distância. Mas o fato é que eu tinha mesmo essa ideia fixa de desconstrução. Sempre tive. Eu sabotava a tudo e todos e principalmente a mim. Era como passar um dia em frente a um espelho maquiando um belo rosto só pra navalhá-lo por inteiro ao fim da noite. Era isso que eu fazia com a minha vida. Ou pelo menos tentava. Era essa ideia autodestrutiva latente que não me abandonava, como se a cada tijolo empilhado, eu tivesse obrigação moral, natural, de derrubar mais dois. Era anormal, sobre-humano, perturbador, cansativo...
Mas eu ainda preferia isso a ser igual a todos eles.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O começo é o princípio do fim

Tem coisas que nada exorciza. Nem doze porres seguidos e mais um de ressaca. Nem escrever feito um louco obsessivo compulsivo, como quem precisa bater os dedos nas teclas rindo desesperadamente, sem parar, se não morre. Nem gritar teu medo todo de dentro do peito pra fora, esquizofrênico, numa rua deserta às duas da manhã, acendendo as luzes amarelas das janelas que só aumentam tua angústia por não saber quem vive lá – dentro, trancado, engaiolado, quem será –. Nem se perder na escuridão de um lugar abandonado, música alta, copo na mão sem saber o que fazer, pra onde ir, sem conhecer ninguém ali, com olhar perdido e triste que só enxerga o vazio dos cantos de um lugar tão vazio que por ali só pode andar quem estiver a fim de se esvaziar também. Tanta coisa a vida faz que parece até querer que a gente fuja dela.
Já passa das três e você vai embora com o mesmo pensamento do início, só que agora com maior convicção: tem coisas que nada exorciza. E aí, qual vai ser? Você já tentou de tudo e sabe que nada funciona. Já é tarde, você é velho, tarde demais pra vida, tarde pra tentar melhorar ou pra deixar o orgulho de lado e dar um telefonema. Que orgulho? Não tem orgulho, não. Velho demais pra isso. Tão velho que só o que restou foi o reconhecimento da fragilidade das coisas, da vida, das almas, dos sentimentos. Velho pra saber que não há cura, nem solução. O mundo está fadado à destruição. A noite fadada à solidão – se acostuma a tua, dorme de conchinha, qualquer coisa –. Decide o que fazer contigo.
Cinco da manhã o sol vai nascer e você, velho como está, sabe que isso só é belo em canções e poemas – aliás, como quase tudo na vida, como sofrer por amor, como a dor, o suicídio, e o que seria de nós sem arte? –. Porque novo dia não traz de novo é nada e nem pisar no chão, e nem se recusar a sair da cama, e depois a lavar o rosto, e depois a acordar... Nada disso é novo. Nem o sol. E todo dia o dilema é o mesmo, é você pensando em como sobreviver aos idiotas, é você ensaiando as caras de quem presta atenção a uma conversa quando conhecidos decidem te fazer de terapeuta, é você pensando em formas de sabotar a realidade através da distração – se uma mosca pousar num lugar diferente da mesa do escritório hoje, já está bom –. É você fingindo um sorriso pra entrar na roda, no jogo, na dança deles, de todos aqueles que parecem felizes e aqueles que parecem se recuperar como num estalo de dedos, de todos, enquanto por dentro... Ah, por dentro? Nada importa. Se não tiver comida? Não teve. Se não tiver o sono, nada importa. Se não tiver ar? Finalmente, é o fim. Todos os dias o sol nasce e todos os dias lá está você esperando pelo. Por. Velho, cansado, sem nada nas mãos, sem lenço no paletó, com seu sorriso elástico, amarelo que nem as lâmpadas das janelas de não se sabe quem, vazio como o copo no final da noite, no bar, o cara do lado bêbado demais, tentando começar uma briga, e você...

tanto faz.

sábado, 19 de outubro de 2013

Amar é entregar nas mãos de alguém todas as armas necessárias para tua destruição e rezar quieto todos os dias pra que essa hora nunca chegue mas com a certeza latejante desde o princípio de que sempre chega a hora e as certezas sobre estas coisas nunca falham

Se eu saltei do ônibus à uma da tarde nesse calor desgraçado o sol cozinhando meus miolos fazendo meu cérebro confundir minhas idéias mais rápido que o de costume pra andar com você pela rua você sabe que não é à toa e já te imagino perguntando em breve "o que é que há" e eu dizendo "nada" com olhar de nada morto pros carros na rua sentindo os carros correndo com indiferença em direção a um destino que pouco me importava tão alheios à minha existência quanto eu era alheia à vida em si. Aí você insiste um pouco e eu acabo desembuchando aqueles refrões de sempre de como me sinto tão alheia a tudo e como nenhum lugar em que eu possa estar se parece com um lar e não importa quem esteja andando ao meu lado eu nunca posso me sentir menos sozinha do que me sinto desde que vim parar nesse mundo que não compreendo, e como a tristeza é minha única companhia e como até a mais leve das brisas nas folhas de uma árvore me doe a alma inteira. Aí você vai me dizer que já esteve aqui e que tudo isso passa "relaxa, garota" e "o amor tem dessas coisas" mas no fundo você sabe que não é só isso, não se trata só de amor mas não interessa porque pra todo mundo eu não passo de uma louca ou uma dramática ou uma garotinha fazendo meninice como sempre como naquela madrugada em que acordei todo mundo pedindo socorro porque eu andava na rua em direção a qualquer coisa com um pouco de altura e eu gritei que ia me jogar e eu ia mesmo porque pra mim era a única forma, a única coisa que justificaria essa coisa louca que eu chamo de vida, mas todo mundo só me achou louca, louca era eu e não a vida e ninguém ligou. Eu não queria ombro amigo nem correr pra terapia aliás eu odeio aquela porra daquela mulher "te falei que larguei a terapia? pois bem" eu só queria escolher a rua mais imunda pra agachada chorar por uns instantes porque eu já pensei em voltar pros bares da cidade mas eu não acho que isso resolveria porque dessa vez tudo era maior inclusive a dor no peito também crescera e eu sentia que devia tentar algo diferente de tudo que já fiz nesses vinte anos de vida e aí pensei que seria suicídio a resposta que eu tanto procurava e pensar numa solução me fez lembrar da saudade que eu tenho da garrafa de vodka escondida debaixo da cama que acabou faz uns dois meses, e eu pensei como seria entornar três garrafas e como seria a sensação do coma e pensei que seria bom porque qualquer coisa que não fosse ter de ficar acordada de olhos bem abertos era melhor. Eu só queria chorar uns cinco minutos porque álcool não resolvia mais terapia também não amor só faz a gente querer morrer mais ainda e eu morria de medo de enlouquecer de novo porque não tinha solução, mas eu não ia enlouquecer porque eu sabia "mais uma crise e você ta morta" "mais uma daquelas e você vai se foder bonito" então eu não fazia nada eu só chegava em casa e tentava pensar em coisas que em nada tinham a ver com nada porque se eu pensasse muito nas coisas eu entrava em parafuso e dessa vez eu não ia agüentar e então eu pensei no coma. Se passar um carro com alguma coisa pingando embaixo saca como as vezes acontece eu penso que aquela porra vai explodir e todo mundo ali vai morrer dentro do carro, eu ando na rua e penso que todo mundo vai morrer uma hora e isso é triste mas também, graças a deus! Aí parada esperando o ônibus eu pensei em chegar em casa e escrever as coisas da minha cabeça antes que minha cabeça explodisse mas eu sabia que chegando eu já não lembraria de nada porque essa inconstância e falta de talento, esse fluxo acelerado de loucura não me deixa fazer nada direito e é por isso que eu não sou boa em coisa alguma mas como explicar ao mundo? Que eu tenho uma justificativa pra tudo isso e é por isso também que eu larguei aquela porra daquela terapeuta que só me mandava tomar chá de camomila, que porra ela tem na cabeça pra achar que a porra da minha loucura ia sarar com chá? (filha da puta elegante unhas arrumadas cabelo impecável mestrado doutorado conduta exemplar que se foda, eu odeio esse tipo de mulher frígida se eu fosse um cara não pegaria uma dessas nem a pau, no duro, não sei se pior é ela ou o psiquiatra velho caquético mudo inútil me mandando voltar se precisasse de medicação, porra lógico que preciso). Eu decidi cuidar de mim sozinha e é por isso que eu me mandei de todos os lugares e de todas as pessoas. Você não pode confiar em nenhum desses filhos da puta hipócritas domesticados. Nunca que na porra da minha vida eu vou fazer essa merda de novo de ficar com um cara só! Eu dizia desde pequena pra mim mesma eu dizia que ia rodar a porra do mundo e foder tantos caras quanto eu pudesse desde que fossem bem apessoados, e não ficar nessa de sofrer por um cara só, esses filhos da puta são todos iguais, animais, traidores, ignorantes não conseguem nem entender o que eu falo, nem quando eu deixo de falar. Aí eu falei "eu vou escrever essa porra" lá esperando o ônibus mas desisti de casa e preferi as ruas e nunca vou escrever nem essa nem merda alguma porque tudo que eu escrevo é ridículo, por mais que eu tente não consigo escrever sem parecer uma pré-adolescente melodramática e tudo isso porque sou mulher porque Goethe fazia isso bonito, qualquer merda que qualquer homem escreva é belo por mais melancólico que seja mas se uma mulher sofre só pode ser louca ou dramática ou todo mundo justifica com "coisas de mulher" é o que todo mundo diz. "Se eu bebesse agora ia ser louco porque eu não ponho nada no estômago desde as oito da manhã cara". Mas eu tenho medo e é melhor mesmo encarar os fatos como são ou seja chegar em casa e olhar nos olhos daquela mulher que me olha com olhar de um pintor que odeia os próprios quadros e quer rasgar um por um na maior quantidade de pedacinhos possíveis, minha própria mãe, mas eu a entendo. É esse o meu olhar no espelho também. Só que é pior porque o espelho eu vejo o tempo todo e a minha mãe quase nunca. E eu dou graças a deus todas as vezes que eu chego e não tenho que olhar pra aquele olhar, tipo eu não preciso de mais uma dor pra carregar e eu não preciso lembrar que eu não sei como diabos vim parar nesse mundo uma vez que ninguém pensou em mim antes de eu já estar lá, eu já penso nisso o tempo inteiro. "Por que você parou de escrever?" e eu respondo alguma coisa tipo porque tudo que eu tenho são aqueles clichês que todo mundo já ouviu e se é pra não ser original anárquica e adorada eu prefiro não ser nada e eu não preciso de mais um motivo pra me odiar, eu já odeio tudo o que faço, "compreendes?". Ele pergunta de um jeito intelectual mas sem ser chato eu achei bonito "qual o sentimento que te consome, ein" porque segundo ele esse sentimento que predomina é sobre o que um escritor deve escrever e eu respondo "raiva", todas as coisas que eu faço têm raiva. E essa é a energia que me move e sem ela talvez eu nem levantasse da cama mas eu não posso explicar isso eu só sei que desde criança eu sinto bem lá no fundo que se eu pudesse eu arrancaria a cabeça de quase tudo mundo à bocanhadas e quando eu era criança na escola eu já tinha raiva dos meninos porque eu batia neles bem no lugar que eu sabia que doeria mais que qualquer outro, e quando eu amo é com raiva quando eu como quando eu existo ou danço ou enxergo qualquer pessoa na rua, quando eu caminho quando eu costumava escrever quando sou doce frágil meiga criança patética odiando o mundo e precisando de colo, há raiva. E eu achava que era dor e falta de amor, eu definia tudo dessa forma, mas isso era nos meus dezessete e o que eu sabia da vida até então? Depois eu entendi que era raiva o que eu queria dizer ao mundo quando eu transava quando eu gostava de sexo mais do que qualquer outra coisa não era prazer mas sim. Raiva. Mas como explicar isso a qualquer pessoa? Nem um profissional consegue compreender uma porra dessa sem colocar na caixinha de transtorno psicológico veadagem deles queriam me diagnosticar bipolar mas eu briguei com eles por isso, tenho certeza que não é porra nenhuma de bipolaridade essa merda que eu sinto. É um pólo só. Raiva o tempo inteiro. Quando eu estou "feliz" quando eu sou sociável quando eu saio pra dançar e ficar de porre. Raiva é meu amuleto da sorte, não que eu tenha qualquer tipo de sorte, entenda como quiser. Ele me disse que tudo isso era bom e que eu tinha a energia necessária, me lembrou do conto da stripper o meu conto inacabado como qualquer outro porque por algum motivo desgraçado eu não consigo terminar porra alguma e disse que se eu jogasse esse discurso lá ia ficar bom e voltou com aquele papo de escrever um livro porque "blá blá blá blá blá blá" (coisa que eu elimino nem ouço porque a ideia é muito ridícula e já cansei de dizer pra ele que não sou capaz desse tipo de coisa). Eu acho toda essa coisa de literatura uma grande veadagem acho mesmo, eu não compraria a porra de um livro meu e quem precisa de literatura no mundo além do mais? Embora tenha sido exatamente isso que me salvou (é isso que eu gosto de pensar embora não esteja salva de nada e na maioria das vezes eu nem sei sobre o que eu mesma tô falando e me pergunto será que alguém sabe disso além de mim). Ele disse "pô cadê o conto eu quero ler de novo" eu disse que não ia mostrar mais nada a ele, ele disse que era maldade minha porque gostava do que eu escrevia e conhecia um monte de gente que gostava também, pensei "canalhas de mau gosto". Me pergunta do, quer saber como acabou mas agora ele tá falando de amor e não do tal conto e eu digo "nada de novo só o de sempre tudo igual assim como são todos os homens uns filhos da puta mentirosos como alguém me alertou ainda menina e eu deveria ter dado ouvidos às velhas que tanto odeio". [...]

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Senta aí que eu queria te falar de como eu tenho tanto medo

Nunca há ninguém e isso é coisa com a qual, eu sei, já devia ter me acostumado há séculos. Mas quando todo mundo sai de perto, aí é certo, meu desespero. O vazio se acentua, a solidão me traz de volta o medo quase louco e quase cego de sair dos trilhos de uma vez. O medo de ficar sozinha em casa, que nem quando criança me assolava, agora me devora por inteiro, tremendo cada centímetro de minhas pernas curtinhas, cercadas por meus próprios braços. Não é medo do estranho, do bandido arrombar minhas janelas. Nem medo dos monstros embaixo da cama, dentro do guarda-roupa, do eco do barulho de pés no piso da sala, dos passos apontando pra o topo da escada... É medo de mim.

Senta aí que eu vou te dizer como você, moço bonito, que se preocupa tanto comigo, é a única sombra que tenho pra papear. Eu vou te dizer como estou só, e como me dói não ter ninguém além de mim pra ouvir o que eu tenho pra falar. Moço, eu perdi tudo, foi tudo embora, e comigo só ficou o medo de perder a lucidez que me resta também. O medo de me tornar alguém que não sei mais quem, alguém que desconheço. Moço, eu perdi tudo, e só me resta desamor por mim, no lugar do amor-próprio, que nem sei mais se era isso, ou se era apenas frieza. Indiferença de quem aprende a viver com pouco, de quem poda qualquer galhinho de qualquer plantinha que tenta trazer esperança. De amar e ser amada. E tudo é medo do amor, da vida, e de mim. É medo de que a planta, antes tão bela e inofensiva, se transforme numa carnívora, que vá comer meus próprios pés. E ela sempre cresce, e ela sempre come. Ela devora tudo, leva tudo embora, e é por isso também que não se deve confiar em ninguém.

Moço, não vai embora agora, fica e espera a hora em que eu vou sorrir de novo. Moço, me faz companhia, me dá um pedaço dessa tua alegria, só pra que eu possa continuar meus dias até alguma coisa acontecer. Moço, fica e segura minha mão, pois só me resta o chão, e o medo de enlouquecer, moço.

terça-feira, 7 de maio de 2013

A vida é um milagre

Me perguntas na tua última carta o que penso sobre a vida e o que me motiva todos os dias. Ora, a vida, meu amigo, é um milagre. Isso não significa que ela seja boa. Isso não a impede de ser um grande tédio na maior parte do tempo ou uma grande puta que ainda fará com que quebres muito a cara. Mas ela é um milagre, simplesmente porque todos nós somos uma combinação de pequenos acasos ou destinos, que de repente, por um minuto ou dois, poderia nunca ter existido. Poderíamos não ter sido nada, ou poderíamos ter sido alguma coisa, um feto agonizante dentro de um útero da mulher que se arrepende do feito no mesmo instante.
Foi ainda muito jovem que descobri o "era uma vez" de minha vida, o princípio de tudo, a descoberta que carregaria na memória pelo resto de meus dias. Talvez fosse até jovem demais pra digerir tamanha crueldade contida em uma única informação, mas a vida sempre foi uma sucessão de bombas jogadas em meu colo num susto, de modo que não haveria de ser diferente daquela vez. A vida tem o que tem para te oferecer, meu caro amigo, e, ou tu te viras com isso, ou tu te livras dela. Foge, vai embora, descansa, ou o que quer que seja.
Eu nunca tive coragem para tal ato. Talvez tenha sido o narcisismo que sempre lutou contra os meus maus momentos de falta de lucidez – e por quantos bocados eu já não passei! – contra as vozes na minha cabeça que nunca me deixam em paz, sempre repetindo: faça, é tua única chance, é a única saída, não sejas covarde!
Talvez tenha sido o próprio narcisismo que me salvou de mim mesma, da falta de amor daqueles que deveriam ser os primeiros a me acolher, mas que ao contrário disso, me rejeitaram como só se nega ao diabo! Veja bem, nunca gostei de fazer disso um drama, pelo menos não nos meus escritos. Certas respostas para as perguntas de outrem a respeito de nós mesmos são sagradas. Os "era uma vez" das pessoas nem sempre são doces e alegres o suficiente para virem estampados em capas de revistas. Tudo é extremamente delicado, porque nada, nada no mundo é mais intocável do que os segredos das almas alheias. Sobre a celebridade na TV, a vida quotidiana, a economia e o futebol, nós falamos a qualquer um. Sobre dor, às vezes nem a nós mesmos.
Sabes que eu preferia a realidade de cara, a frieza daquela descoberta de que os que deveriam me amar mais do que tudo no mundo, na verdade me preferiam morta. Eu prefiro assim, porque tudo, exatamente tudo, fez de mim quem sou. E vou dizer-te o que sou:
um milagre
Com toda a minha loucura e toda a minha doença, todos os dons, a sensibilidade por demais aguçada, um rosto de boneca difícil de se criar coragem para estragar, eu aprendi a me amar. Eu fiz por mim mesma o que ninguém fez por mim. Eu me fiz um favor, o melhor de todos! Eu me pus em primeiro lugar. Eu me fiz prometer a mim que me faria feliz. Com toda uma história, um desequilíbrio, esse narcisismo, ou essa esperança maldita, ou o que quer que tenha sido, me fez continuar. Me impediu de fugir, de ir embora, de descansar.
Sim, de fato preciso de pílulas e mais pílulas para relaxar, para não sair dos trilhos de uma vez – sabe lá deus onde eu iria parar – mas, me diga quantos nomes de personalidades geniais, de pessoas que transbordaram arte por toda a vida consegues citar que não tenham passado pelas mesmas coisas? Que tenham tido vida perfeita, nascimento planejado com direito a berço de ouro e família feliz de comercial de margarina? Não consigo me lembrar de muitos, meu caro.  
[...]
Espero fazer por ti o que eu fiz por mim: espero te fazer entender que por mais que nosso pessimismo nos diga que ninguém é especial, que todos somos substituíveis e que nada dura para sempre, todo ser humano é sim único, com todas as nossas feridas e cicatrizes e esquisitices às vezes difíceis de serem compreendidas pelas almas mais distantes. Eu vou falar-te de coisas boas, porque é para isso que se escrevem as cartas: o amor existe e é eterno. Mesmo que eu não tenha certeza disso. E Deus, sabe Deus? Ele também existe. E nossas vidas, aquelas das quais resmungamos todos os dias, elas são grandes milagres. Não para o mundo, não para os que as tornaram possíveis, mas principalmente para nós mesmos, meu amigo. Não acabe com ela ainda. Espere por alguma coisa, qualquer coisa, pois é assim mesmo que vivo. E não será assim que vivem todas as outras almas? Vomitando o ódio e o rancor em favor de seus respectivos bens.
Outro dia vi uma frase que me fez lembrar você, anotei na parte de dentro de uma embalagem de cigarro:
"Não fique triste por causa das pessoas. Elas irão todas morrer."

sábado, 27 de abril de 2013

Slipping away, parte 2

[...] Eu sou uma farsa, amor. Eu sou apenas a personificação dessa madrugada lenta, vazia e cheia de insônia. Eu sou essa cama gelada e essa saudade e esse buraco enorme no peito, desejando sua presença aqui mais do que qualquer outra coisa que minh'alma possa desejar pelo resto dos meus dias. Eu sou essa ferida aqui dentro, meio cicatrizada, que não sangra, nem pulsa, nem nada. Que só quer você.
Estou ouvindo aquela música que soa toda como cada movimento seu em minha direção, lembrando de como comigo você sempre foi muito mais doce do que com qualquer outra pessoa. Exatamente como a canção. A mesma que você cantava pra mim no tapete do seu quarto, com a rouquidão que sempre amei e amo, com a mesma doçura com a qual você escrevia atrás das embalagens de cigarro qualquer frase boba pra que eu guardasse e lesse mais tarde, pra que me lembrasse de você e talvez me animasse, quem sabe. A última delas, naquele bar pertinho de casa, dobrando a esquina: eu queria consertar você. As lágrimas escapuliram pra fora (como elas sempre fazem quando estou ao seu lado, e só quando estou ao seu lado, como se tudo só fosse seguro quando você está por perto) descumprindo minha ordem de se manterem escondidas porque eu não queria contrariar a sua vontade de me ver sorrir, e não queria te dar o trabalho de limpar meus olhos borrados nem de se preocupar à toa.
Era só pra te fazer um carinho, e agora você tá chorando de novo. 
Eu ouço você dizer, ainda mais rouco com a neblina e o sereno das quase três da manhã. Como explicar que se não consigo conter o choro é por tristeza em saber que teu desejo não pode ser realizado? Você e essa mania de tentar me amparar a qualquer custo. Eu sinto toda aquela fragilidade de cristal pendulando no ar de novo. E tudo é muito pior agora. Exatamente pior agora porque a essa altura eu já descobri que nem você nem nada pode me salvar. Não há como fazê-lo e por isso você não vai me desculpar. Você não vai se desculpar. Mesmo que eu prometa guardar todas as frases rabiscadas nos versos das caixas de cigarro. Mesmo que eu me lembre de todas as canções, de todos os conselhos e de todas as vezes em que você me guardou num abraço.
Eu fecho os olhos como que pra checar pela última vez se já não há mesmo chance alguma de que ainda exista algo de bom em mim, de que eu possa ainda talvez me fazer feliz, pra então te fazer feliz.
E dessa vez não é o amor que escorrega por entre nossos dedos. Dessa vez não há beleza nas palavras, nem romantismo na tristeza das embalagens de cigarro. Só há você, desejando que pudesse me consertar. E eu, sabendo que não sou algo que se possa consertar.
E nós, escorregando.

domingo, 21 de abril de 2013

Morrerei calada




Morrerei calada. Lenta de suave, quieta; rápida de sem mais transtornos. Morrerei em vão, e ninguém ouvirá o último respirar, o último pulsar, o último momento. Ninguém presenciará os últimos passos no corredor nem o vento discreto que corre entre os móveis de uma sala. Ninguém perceberia a sutiliza de deixar de ser.
Morrerei de minha própria desgraça, a mesma em que caio neste mesmo instante, no auge de minha juventude. Da minha desgraça para minha paz, sem testemunhas; vítima de minha própria doença, doença que a mim causei, doença que explodiu no mesmo instante em que expulsei a mim mesma de dentro do ventre daquela menina a mim tão estranha.
Desaparecerei sem deixar rastros, e quando procurarem, tudo o que encontrarão serão vestígios de uma vida que não foi minha, de um amor que não fui eu quem fiz, pois, se, ainda em vida, nenhum deles se mostra capaz de sentir o que sou, tampouco compreenderão o que digo quando estiver calada para sempre. Mais calada do que em vida.

Para sempre. 

Mas não procurarão, e portanto, não acharão. Não se lembrarão, como não se lembraram antes.
Morrerei e seguirei em direção a meu merecido descanso, descanso do sentir e da loucura. Quieta, lenta, precoce. Como quem foge por desespero de saber o que está por vir, o que se esconde na velhice, na invalidez e exaustão da alma, o que está por trás do fim.
Morrerei para mostrar o quão certa estive sobre a morte. Mostrarei como, quando se trata dela, não há o que temer. Morrerei e comprovarei o que escrevi em vida por tanto tempo, aquilo de que alguns duvidaram e me julgaram dramática por acreditar: todo ser humano é só.
Tudo se trata de solidão, e a morte se trata da confirmação de todas essas coisas. 
Se em vida fui só, é por isto também que morrerei.

Quieta, lenta e precoce.
   

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Os sofrimentos de um jovem qualquer

Eu permanecia ali, acariciando-a com a minha língua por entre suas pernas e, apesar do cansaço, não me atreveria a parar, por saber que jamais nesta minha vida veria algo tão lindo quanto as curvas daquela mulher a se contorcer avidamente sobre meus lençóis. Ainda que vivesse mais de duzentos anos, não acho que seria capaz de encontrar algo mais sublime do que aquele conjunto de cenas ordenadas, tão previsíveis como passos de dança ensaiados, mas que nem por isso deixavam de me prender em profundo encantamento, todas as vezes em que se repetiam.
Que me perdoem as próximas, e sei que nem necessito conhecer todas elas para saber agora mesmo que mulher alguma será mais bela do que a imagem que guardo daquela que é a mais bela de todas. Nenhuma sensação que ainda hei de experimentar – e que me perdoem também os deuses por esta arrogância de quem acha que conhece o que está por vir – nesse mundo gigante terá mais beleza do que sentir o suor quente daquela dama escorrendo por entre meus dedos trêmulos de alegria, fazendo escorregar e escapar de mim aquele corpo trêmulo de prazer. Aquele suor que espalhava por entre as fibras de meus lençóis de algodão o cheiro daquela mulher, cheiro que durava semanas e que semanas depois eu ainda sentiria e buscaria por toda parte com desespero de quem tenta sugá-la por inteira e trazê-la de volta para mim, somente para mim. Cheiro que me faria pensar por semanas nas camas em que ela estaria se deitando, nas línguas que dela estariam provando, nas peles que estariam possuindo seu cheiro, sua pele, seu suor ardendo em prazer.
Por todos os deuses, como eu queria fazê-la somente minha! Por tudo que é mais sagrado – se é que há algo de sagrado no mundo além do que sinto por esta dama quando a tenho em minha cama e em meus poderes – como a odeio profundamente ao imaginar o que anda sussurrando aos ouvidos de outros rapazes, ou dos favores que anda a fazer para os mesmos. Penso que seria capaz de matá-la se me relata todos os causos que tem por aí enquanto não volta novamente ao meu encontro. Penso também em como seria capaz de dá-la todas as surras do mundo se me nega responder o que pergunto sobre eles.
Na verdade, não seria capaz de nada que penso ser, pois no mesmo instante em que a odeio por não ser somente minha, no mesmo instante em que desejo a ela todos os tipos de punições possíveis desse mundo ingrato por não estar ela em minha posse, me amolece todos os pensamentos lembrar-me do quão doce é tê-la em meus braços, recostada no meu peito, sonolenta, depois de tê-la feito esquecer-se dos outros, sublime e satisfeita.
Escreveria todos os poemas do mundo caso isso pudesse prendê-la a mim, como nunca fiz em minha adolescência, muito menos em toda minha vida, se para ela amar não fosse assunto proibido, se para ela, amor não fosse o que mais despreza nesse mundo tão cheio de coisas bem piores do que o amor para se desprezar! Sendo assim, tudo o que me resta fazer é me contentar com o que tenho, que é ter aquela mulher pela metade. É pouco, sei disso. Sei também que devo acabar é louco qualquer dia por conta dessa minha imaginação que voa longe e desse meu ciúme e desse meu ódio que me corroem por dentro. Mas logo ela chega e me esqueço por uns instantes do azar que é a vida enquanto seu corpo não está por perto.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

11/01

Estou pensando que és diferente, o que, para mim, romântica que sou – e com este termo refiro-me à minha inclinação para idealizadora incorrigível – é uma das coisas mais perigosas. E falo-te por nada além de experiência.
Pensarei assim, até que cometas tua primeira omissão, quiçá tua primeira inverdade – se é que já não as fez e só irei eu descobrir com o passar do tempo que nos trará a maldita intimidade – e será para mim catastrófico – para dizer-te o mínimo – desfazer a bela imagem que minha mente, irremediavelmente imaginativa, criou de ti. Por acaso não alertei a ti desde o princípio sobre quão difícil é minh'alma? Não seria diferentemente difícil arrancar-me as ideias uma vez já enraizadas em minha cabeça, nem tão fácil seria explicar às taquicardias que invadem-me e encharcam-me as artérias por conta das emoções associadas a tais ideias que me deixassem, pois já não existem mais ideias e o que ficará de ti será somente o que é real.
Não poderei a ti atribuir culpa alguma, vez que, como de costume, fui eu a responsável por toda esta confusão! Fui eu a querer-te primeiro por atribuir-te a missão de ser completamente incomum entre os demais cavalheiros, ou desejei-te e, por isso, atribuí a ti tal missão: e o que importa a ordem quando tudo se trata de imaginação? Pois são os que vivem da realidade os que preocupam-se com os números, com as ordens, as ciências e com a lógica! A mim não importa nada se não minha própria tristeza e dor.
Perdoe-me, nobre cavalheiro. Não foi por segundo algum minha intenção fazer-te perder teu precioso tempo com minhas ladainhas infelizes.
Perdoe-me e esqueça-me, pois nesse mundo onde, paradoxalmente, a realidade reina embora a mentira predomine, já nem existo mais. Perdoe-me, cavalheiro, que nada disso é para mim.
Perdoe-me se fujo por saber que, se fico, tudo só se tornará pior, alargando-me a dor que carrego no peito e que, compreenda, já não é lá muito modesta.
Oh, quão abominável és tu, querida realidade.