terça-feira, 31 de maio de 2011

Há tanta vida lá fora, depois da janela, dobrando a esquina






A sensação de doença. A alergia irritando o nariz. A amargura do café que acabou na boca. A garganta que arranha pra tentar se livrar dos pedacinhos de alguma coisa que parecem estar lá no fundo. Da garganta. Há tanta vida lá fora, depois da janela, dobrando a esquina. Há tanta vida aqui dentro, dessa alma, depois das paredes que criou do lado de dentro, como se as do lado de fora do castelo já não fossem suficientes. Há tanta beleza no espelho agora, e pra quê. Pra um mundo esquecido e que te esqueceu também. Pra um príncipe que não existe, e que te visita em sonho. Pra uma realidade muito mais crua do que a que se espera ter. Só pra esses sonhos guardados que todo mundo sabe que já estão quebrados, mas continuam guardados porque é só o que se tem pra guardar. Tudo guardado pra vida que ela espera acontecer; pros planos que ela espera acontecer; pro amor que ela espera acontecer; acontece logo, vai. Alguma coisa. Qualquer coisa. E o que acontece é a água, pra tirar o nó da garganta e o gosto velho do café; acontece o banho, pra lavar a doença e a mente; acontece de resolver os problemas instantâneos e voltar pra detrás da janela, pra dentro do castelo, pra continuar a sonhar. E é assim todos os dias. Os dias acontecem, só não acontece vida nos dias.

domingo, 29 de maio de 2011

Falta






Sinto falta de você e do nosso próprio mundo, quando nada mais importava porque tínhamos um ao outro e isso era mais do que suficiente. Sinto falta das nossas tardes chatas de domingo que não eram chatas porque, novamente, tínhamos um ao outro. Falta do seu cheiro, da sua pele. De nos dois juntos no ônibus. Nós dois juntos sonhando e fazendo planos. Nós dois juntos compartilhando nossas loucuras que o mundo tanto estranhava; nós dois nos entendendo, nos sentindo. Falta de não ter que estar sozinha, de não ter que encarar a solidão. Do meu sonho bom. De ter pra quem contar sobre os meus dias, cada pequeno detalhe. Falta de alguém se importar, de cuidar de alguém. Falta de tudo, tudo mesmo. De você pertinho, de ser sua única garota. Das nossas fugas, nossos segredos, seus sussurros no meu pé de ouvido. Falta das nossas risadas, de poder ser como criança de novo. Da nossa amizade; de confiar, de me sentir segura sem ser julgada. De ser acolhida quando a dor chegava. De brigar com o mundo, e nunca com você. De abandonar tudo, mas nunca, você. De ser tudo mentira: todos os contos de fada, os sorrisos cínicos na cara das pessoas, as boas intenções, tudo, menos eu e você. Falta, falta, falta. Isso é tudo que tem aqui agora, ao lado da minha cama, dentro do meu coração, em todos os lugares que você já ocupou. Falta muita coisa. Falta de você, falta de amor, falta de mim mesma.

sábado, 14 de maio de 2011

Could you be the devil, could you be an angel

Então eu olhei nos olhos dele, e foi como uma daquelas coisas que não se deve fazer. Olhos de anjo decaído. Todo o encanto e sedução que eu, como mortal, jamais havia imaginado existir. Não foi como amor, não foi doce. Foi pecado, e eu senti arder em mim fogo quente quase como o do inferno se eu, como mortal, conhecesse tal lugar. Ele ficou parado e não fez sinal algum em minha direção, porém não deixou de me notar em todo aquele transe e todo aquele olhar de fascinação e todos aqueles pensamentos que, eu tenho certeza, ele podia ler. Eu li e reli então o seu corpo por inteiro e eu senti dos desejos o mais arrebatador. Eu olhei nos olhos dele novamente e foi como uma daquelas coisas que não se deve fazer, então com toda a força e manipulação daquele olhar, eu quis, quis por inteiro provar daquela criatura inteira com a minha língua. Eu quis aquele corpo em mim e eu quis que me levasse, me levasse onde quisesse. Eu olhei nos olhos dele e tudo nele podia me controlar completamente. Ele me empedraria se quisesse. Tudo que eu sentia era queimar tudo em mim. Eu notei cada linha daquele corpo e era como se a cada caminho que eu seguisse eu me perdesse mais, só que eu não sentia medo. Aliás, eu era incapaz de sentir coisa alguma. Todo o ar segundos antes disponível já havia sido roubado, desapareceu, e eu quase podia ver asas nascendo por detrás daqueles ombros nus. Eu fotografei visualmente como cada fio de cabelo parecia escorregar perfeitamente sobre aquele rosto pálido, aqueles fios negros, todo aquele contraste e novamente, olhos. Eu quis correr e me lançar em seus braços, mas então eu consegui sentir, e senti medo. Medo que ele desaparecesse no ar, medo que voltasse ao céu ou ao inferno e que dessa forma fosse tirado de mim. E não era amor, era necessidade. Eu não poderia agir como se fosse amor. Eu queria que ele viesse, que ele me dissesse que ficaria, que houvesse forma de fazê-lo meu. Pra sempre meu. Somente meu. Eu queria roubar aqueles olhos pra mim, e as asas para que ele não pudesse partir. E que o fogo que a essa altura já havia tomado meu corpo por inteiro jamais se esgotasse, porque no mundo não havia nada perto disso.
Ele me sorriu de lado e aquilo foi como uma faca afiada no meu coração que pulsava forte e agora sangrava. Deu um passo para trás, e eu queria puxá-lo de volta, mas estava longe. Como eu viveria agora? Como se mostra o céu a alguém e o pede que se contente somente com a Terra novamente? Eu tentei gritar por ele, porém além de não conseguir desprender a voz da minha garganta, eu não sabia como chamá-lo. Eu não sabia se o chamava Lúcifer, ou sonho meu. Eu não sabia quem ele era ou o quê. Eu não sabia se foi só um sonho. Mas ele sumiu.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Capítulo 7

Dor. Claridade. Dor. Só queria fugir, mudar um pouco de ambiente, conhecer gente nova – sabe-se lá o que ele queria – e já na segunda noite o que arranja é um nariz quebrado. É fato que, onde quer que esteja, suas noites nunca eram muito criativas, quase sempre terminavam assim: briga; de modo que a sensação já era por muito tempo conhecida, estava acostumado. O que, obviamente, não torna a dor menos dor. Levou um tempo pra retomar a memória, entender onde estava e tudo o mais. Mais um cara no quarto, três na sala, garrafas vazias de cerveja espalhadas por todo o apartamento pago por dois meses. Procurou sem muitas esperanças por alguma coisa na geladeira que servisse como café da manhã, mas não demorou muito a perceber que não havia nada lá além de garrafas de cerveja. Lavou o rosto – ou a parte intacta que restava dele –; no quarto, cinzeiros e restos de cigarro pelo chão; colocou a jaqueta de couro, descendo as escadas do prédio no caminho à padaria.
Pediu café forte e puro, acompanhado de bolinhos recheados com queijo. E tudo tinha tanto o cheiro de casa que era inevitável aquela invasão abrupta da sensação de falta; saudade, é como chamam. E tudo do que ele tentava fugir, e toda a fraqueza que se tenta enterrar, estava ali: viva como nunca antes. Ele acorda, naquele susto de quem volta pra vida real depois de passar uns segundos perdido em lembranças. Olha em volta. Umas pessoas trabalhando, outras sendo servidas, muitas passando pela rua – a caminho de seus trabalhos, escolas, encontros –; ele pensa sobre elas. No que estariam pensando enquanto tomam seus cafés solitários. O que conversam os casais que se fazem companhia. O que elas já deixaram pra trás? Quem as espera em casa enquanto não voltam? Talvez tantas perguntas sejam só tentativas um tanto desesperadas de encontrar nas respostas uma identificação; ouvir de alguém que ele não está sozinho, que coisas difíceis acontecem com todos, que existem sentimentos que todo mundo experimenta da mesma forma, e que tudo um dia ainda pode ficar bem. Deixa a grana e sai. Entende logo que era um daqueles dias em que sua mente se contorce sem parar, e decide a qualquer custo não enlouquecer, não hoje. E já era o isqueiro que não ascende. Talvez por ter deixado-o cair.

domingo, 8 de maio de 2011

Capítulo 6

Nada pior do que ter de acordar às seis da manhã de uma segunda-feira a fim de gastar no trabalho o restante da vodka que ainda corre pelas veias. Tentando, só conseguiu se recordar vagamente de alguns fatos da noite passada – frases soltas e gente meio embaçada – percebeu que havia exagerado. Mas fazer o quê, ela era assim. Ou tudo, ou nada. E quando sai da toca, é disposta a sentir tudo o que a sua doce e invisível caixa protetora a impede de sentir. Ela gosta assim. Na verdade, não é bem uma escolha. Nasceu com isso, essa luta louca contra todo tipo de limite que possa existir; essa ânsia de alma tão grande que quer sair de si. E não se importava. Como toda grande alma, também é boa o suficiente em peitar as conseqüências. E como ela fazia isso? Não dando à mínima. 
Trabalhava na biblioteca estadual da cidade, a única por lá. Quanto ao ambiente, não havia muito que reclamar. Era uma biblioteca completa, por assim dizer. Muito bem estruturada. Quanto ao trabalho e a vida, várias queixas. Porém ela simplesmente guardava suas insatisfações para si: tinha vivido o suficiente para saber que lamentação nunca serviu como um passo à frente. Tinha os seus sonhos, os possíveis e os por demais imaginativos que só poderiam mesmo vir de pessoa como ela, dessas que te tanto viver em meio a livros, se ambientou a verdades pouco conhecidas, a desejos do improvável e incomum e, principalmente, dessas pessoas de alma tão grande que a vida real, definitivamente, jamais seria capaz de lhe oferecer o que deseja a alma. Por isso, fogem. Fogem e se perdem nos lugares mais sombrios de dentro de si; nos palácios mais altos de um mundo criado só para alguns instantes de prazer, prazer este negado pela imperfeição que vem junto com a vida - a de verdade -.
Depois de um certo esforço vindo do velho despertador de pilha fraca, é que consegue despertar. Ela levanta e vai direto ao espelho e nunca nem se perguntou a razão de tal ritual. Talvez se perdesse durante o sono, talvez sentisse falta de si mesma ou acordasse deveras desnorteada precisando retomar a sua imagem. Talvez tudo isso junto. Maquiagem borrada e cama vazia. A única coisa boa em acordar é que essa é a hora em que, por costume, todos desjejuam com a sua bebida favorita – como se ela já não tivesse, por costume, o vício em café a qualquer hora do dia –. Ela se perde com tamanha facilidade, desde pequena que é chamada a atenção: “Está ouvindo o que eu falo? Você ta sempre no mundo da lua. Mas que lerda!” pra falar a verdade, ela tinha certa capacidade de se acostumar a coisas que, naturalmente, seriam irritantes e, por isso, nada do que sua mãe um dia falou surtiu algum efeito sobre qualquer coisa nela. Corta o pão, pega a manteiga, e tinha alguma coisa no café, ou alguma coisa que olhava pela janela que a fez lembrar-se dele. Ou foi só mesmo a insistência em recordar a noite passada – acha tão estranha a sensação de não se lembrar de quase nada, não pode ser! –. 
Jurava que chegou a sentir uma leve alteração nas batidas, até então, quase imperceptíveis do seu coração, ao ver a imagem daqueles olhos voltando a sua memória. Eram tão vivos e presentes que ela quase podia voltar à cena; ela quase podia vê-los ali, parados em frente à janela, bloqueando a passagem de luz, como se a própria luz que viesse deles fosse suficiente. Relembrou a voz dele e os flashes vinham mais rápidos do que o que ela podia controlar. “Você não quer cuidar?”, sorriu e se seguiu o som do alarme que indicava seu atraso, antes que pudesse se dar conta do quão ridícula parecia em pé ao lado da pia sorrindo ao pensar em como havia lhe agradado a voz do tal desconhecido.