quinta-feira, 7 de julho de 2011

P.S. devolve a minha camisa dos Ramones

Então ele gritou falhado, com rouquidão maior do que o normal por conta do longo tempo que já durava aquela conversa que de tão áspera, já ultrapassava os limites de uma rotineira briga de casal: eu vou embora! Eu sabia que já havia se decidido, vez que, por me conhecer, ele podia prever que nada ouviria de mim além de: como quiser! Também aos gritos, é claro. Mas ele não foi – pelo menos não naquela hora –, em vez disso, sentou na poltrona. Talvez pra tentar se acalmar; talvez por ainda ter coisas por dizer e depois disso a esperança(ou desespero) de resolvermos tudo de novo – ou de empurrarmos pra debaixo do tapete, porque resolver não combinava com a gente –; ou talvez pra ficar para mais, simplesmente por gostar de mexer na ferida. Nós dois gostávamos. Eu disse que sentia nojo, dele e de sua inutilidade. Que ele deveria arranjar algo que realmente importasse pra fazer, ao invés de ficar escrevendo aquelas rimas de Rock bastardas e incompletas – pras quais ninguém dava muita atenção – e se envenenando com álcool e fumaça todos os dias. Ele disse que eu me envenenava do mesmo jeito, e eu disse que pelo menos tinha motivos sólidos e que eu pelo menos estudava, eu fazia alguma coisa da vida. Ele concordou, mas disse que também era problema meu porque se eu estava ali, era por gostar de tudo que ele era. Eu continuei xingando-o e inventando acusações desconexas fingindo não ouvir seu último comentário, porque jamais admitiria que ele estava certo, sabendo que estava. Eu ficava cada vez mais irritada pelo sarcasmo na sua voz e pela calma que aparentava agora, sentado na poltrona, na minha poltrona, me assistindo andar de um lado para outro feito louca formulando dor em forma de palavras pra lhe atiçar na cara: e a propósito, na cama, você não me faz nem cócegas! De novo, aos berros. Ele me olhava com olhar de pena e desprezo, provavelmente refletindo sobre o quão baixa eu podia ser só por raiva. Ele disse que era mentira, e que eu sabia que era. E eu odiava o fato de ele estar certo mais uma vez. E quanto mais certo ele estava, menos eu queria parar; jamais me dou por vencida, e ele também sabe disso. Ele me chamava de ridícula e eu me sentia triunfal por me saber tão superior no quesito crueldade. Eu sempre fui a mais cruel. Sempre. Mas ele também sabia como me fazer ferver de ódio: bastava ficar mudo, desistir. Bom, ele teria que desistir pra que eu saísse como campeã, mas também me irritava profundamente seu silêncio. Em suma, eu só mesmo parava quando me dava por satisfeita. E se ele não mostrava reação, eu o provocava até o fim. Até quando eu decidisse que era o fim. “Você é ridícula”, ele disse num tom baixo, desistindo, me abandonando lá em agitação, sozinha. Sentado na minha poltrona ainda, a coluna desalinhada, quase deitado. “Você é ridícula”, desviou o olhar de mim no mesmo instante em que falava e seu tom diminuía a cada palavra, como que perdendo as forças. Agora ele encarava as mãos abandonadas, deitadas sobre o próprio jeans, fixamente, sem mais aquela esperança de sentar na poltrona e empurrarmos nossa sujeira pra debaixo do tapete. Eu fui até ele, impondo meu rosto bem próximo ao seu, e levantando um pouco os olhos ele podia ver no meu olhar que eu ainda não havia terminado. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, levantou. Foi em direção à cozinha, e eu o segui empurrando-o inutilmente, vez que seu corpo tinha quase o dobro do peso do meu. Segurei seu pulso e o levei até a parede, pressionando-o com a ponta das minhas unhas. Ele se livrou quase facilmente, com um pouco de força, o que não eliminou o fato de eu tê-lo machucado. Eu sabia que gostava de mim. Eu sabia porque ele podia ter dado o troco, ou simplesmente me empurrado para longe dele, pra respirar. Mas nada. Nenhum movimento em minha direção. Ele simplesmente virou o rosto, apanhando suas chaves em direção à porta. Já faz quase duas semanas. Nenhum sinal dele. Agora estou aqui, relembrando todos os detalhes daquela noite infantil, sentada na mesma poltrona, olhando para a folha bege dobrada sob o abajur e o chaveiro da farmácia ao lado, meu coração pulsando forte de medo e, pela primeira vez nesses treze dias, eu me arrependo de como deixamos as coisas chegarem àquele ponto. Eu sabia que ele não voltaria. Aquela fora a gota d’água, como todas as nossas brigas eram a gota d’água e mesmo assim sempre voltávamos a precisar um do outro, ainda quando jurávamos para nós mesmos que nos odiaríamos para sempre; porém nunca havíamos passado tanto tempo brigados, exceto pelo mês e meio em que rompemos, mas depois daquilo, nunca. Sabia que não voltaria e imaginei um bilhete de despedida, uma carta de palavras tristes e, por isso, bonitas; um desabafo, alguma declaração de amor com um “apesar de tudo, não dá mais”, ao fim. Custei a puxá-la de debaixo do abajur, mas quando o fiz, abri com pressa, sentindo minhas mãos estúpidas tremerem, e li, feito com aqueles garranchos desarranjados de compositor barato e músico canhoto:
“as chaves estão aqui.
P.S. devolve a minha camisa dos Ramones.”


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