sábado, 9 de julho de 2011

Pode me chamar de estrago




De novo e como sempre: sua euforia não durava mais de quinze minutos. Não sabia se era feliz, com alguns instantes de desamparo, ou se era triste, com alguns minutos de falso divertimento. Há pouco tempo ria, fumava, falava alto e agitadamente. Tocava as pessoas, cumprimentava conhecidos, observava como uns e outros estavam vestidos e se a decoração da boate tinha inovado hoje. Dançava feito louca, como se o mundo fosse acabar nos próximos instantes. Horas depois acordava do lapso de ânimo, com a antiga sensação de não saber onde está e o porquê de estar ali. Olhava ao redor, via as pessoas se divertindo, via os rostos bonitos, os toques e carícias, a juventude ali, tão limpa, tão exposta. Tentava recuperar o ânimo escapulido, sem sucesso. Tentava fazer seu caminho até o banheiro, provavelmente já muito sujo a essa altura, assistindo à sua volta aquela gente que parecia tão verdadeiramente preenchida, tão viva  mal se sabia tão enganada . Entrou no banheiro masculino, supondo como o outro estaria cheio, evitando contato, evitando gente pra lhe atiçar perguntas sobre seu estado físico e emocional. Aliás, tinha mesmo essa tendência a evitar. Sua mente girava um pouco por causa de uns Martinis, embora não fosse fraca pro álcool. Diferente disso, era fraca pros sentimentos que habitavam dentro dela, eles sim causavam ressaca; e ressaca de anos. De repente se sentiu só, profundamente só, uma sensação estranha e desesperadora que só pode ser mais proximamente definida por uma sensação de não mais existir. Os sentimentos que ela tanto sufoca diariamente lhe escapavam, vindo à tona de um jeito mais forte do que o que ela podia controlar. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... Ecoava pela sua cabeça, se repetindo compassadamente. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... A música alta ecoava junto aos seus pensamentos embaralhados, o som esbarrando na porta e indo ao seu encontro. As batidas eletrônicas tentando puxá-la de volta à realidade, ao momento presente. Inútil. Ela já não estava mais ali. Havia se perdido, acontecia vez em quando. O que detestava mais nessas noites de suposta felicidade era justamente o medo, medo da felicidade. Medo porque o que está ali pode em instantes escapar, sumir talvez até mais facilmente do que a fumaça que lhe foge pela boca agora e se dissipa leve no ar. Ela odiava a rebeldia de suas lembranças, a dificuldade que elas tinham de obedecer suas ordens de ficarem exatamente lá: onde ficava tudo o que ela separava e trancafiava na caixinha de quero esquecer, preciso esquecer, e era violenta a forma como lhe atingiam. E era violenta a perda súbita da euforia que há pouco se encontrava ali, era violenta a solidão, as vozes na sua cabeça, era tudo violência suficientemente bruta e forte pra lhe derrubar ali, no chão daquele banheiro público e imundo, o que não lhe importava tanto: talvez fosse o chão tão imundo quanto era ela por dentro de si. Sentia vontade de chorar, não conseguia. Estava tudo tão preso, era toda tão cheia de não conseguir deixar as coisas saírem de dentro. Embora. Deixa ir. Não conseguia. Não sabia por que, não conseguia. Talvez porque fosse tão só. Só ela e esses fantasmas como companhia. Os olhos brilhavam de angústia, umedecidos, mas nada lhe corria o rosto, como se fosse vazia demais, até pra isso. É muita inflamação pra tão jovem coração. Veneno demais, ferida demais pra tão pouca vida. Alguns já tinham a percebido ali com olhar de estranheza, porém sem mais preocupações: todos chapados demais pra se importar. Jogada, se abandonando. Soa triste, mas era tão boa a sensação. Só ela e o chão. Sem ligar pra roupa se encardindo, sem ligar pras pessoas observando, eliminando toda a importância que se dá ao mundo, ao corpo, à lama, à gente, ao mundo. Todos aí fora, são tão sujos quanto eu, sem nem precisar sentar aqui nesse chão! O cigarro quase ao fim e agora começam a tocar uma de suas músicas favoritas, mas ela não se importa. Ela não está mais ali. Não há mais a porta por onde entrou como caminho de volta. Não há mais como engolir todo o lixo de volta e colocar no lugar a felicidadezinha micha do início de noite. Pelo menos não mais naquela noite. É mas talvez eles sejam felizes... Talvez eles sejam algo além de sujos. Algo além do que o que eu consigo ser. Um sujeito alto parado em sua direção, ela nem havia notado a hora em que chegou. “Ei, você tá legal?” Sua voz se atrasava em chegar até ela. “Precisa de ajuda?” Ele disse enquanto ia se aproximando devagar, cuidadoso. Ela não enxergava direito aquele sujeito borrado, quis pedir pra que ele parasse um pouco de girar. Não respondeu nada. Ele não voltou a perguntar. Em vez disso, agachou perto dela, procurando talvez forma de fazê-la mais confortável, pra se sentir útil. Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida... “Você quer que eu chame alguém ou que eu te leve em algum lugar?” Balançou a cabeça negativamente, mas logo em seguida lhe ocorreu a ideia de que explorar um desconhecido talvez fosse útil em lhe distrair daquele vazio sem fim. “Como você chama?” “Fernando. E você?” “Pode me chamar de estrago.”

2 comentários:

  1. Fia teus textos parecem diário de bordo de uma rotina de afazeres que devem ser registrados em ata para não serem esquecidos pelas próximas gerações, como um manual de sobrevivência de alguém quem já passou por muita coisa e não quer ver as outras pessoas passarem por isso! cê tá me surpreendendo O.O

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  2. Resumindo, uma jovem de alma velha. haha

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