domingo, 8 de maio de 2011

Capítulo 6

Nada pior do que ter de acordar às seis da manhã de uma segunda-feira a fim de gastar no trabalho o restante da vodka que ainda corre pelas veias. Tentando, só conseguiu se recordar vagamente de alguns fatos da noite passada – frases soltas e gente meio embaçada – percebeu que havia exagerado. Mas fazer o quê, ela era assim. Ou tudo, ou nada. E quando sai da toca, é disposta a sentir tudo o que a sua doce e invisível caixa protetora a impede de sentir. Ela gosta assim. Na verdade, não é bem uma escolha. Nasceu com isso, essa luta louca contra todo tipo de limite que possa existir; essa ânsia de alma tão grande que quer sair de si. E não se importava. Como toda grande alma, também é boa o suficiente em peitar as conseqüências. E como ela fazia isso? Não dando à mínima. 
Trabalhava na biblioteca estadual da cidade, a única por lá. Quanto ao ambiente, não havia muito que reclamar. Era uma biblioteca completa, por assim dizer. Muito bem estruturada. Quanto ao trabalho e a vida, várias queixas. Porém ela simplesmente guardava suas insatisfações para si: tinha vivido o suficiente para saber que lamentação nunca serviu como um passo à frente. Tinha os seus sonhos, os possíveis e os por demais imaginativos que só poderiam mesmo vir de pessoa como ela, dessas que te tanto viver em meio a livros, se ambientou a verdades pouco conhecidas, a desejos do improvável e incomum e, principalmente, dessas pessoas de alma tão grande que a vida real, definitivamente, jamais seria capaz de lhe oferecer o que deseja a alma. Por isso, fogem. Fogem e se perdem nos lugares mais sombrios de dentro de si; nos palácios mais altos de um mundo criado só para alguns instantes de prazer, prazer este negado pela imperfeição que vem junto com a vida - a de verdade -.
Depois de um certo esforço vindo do velho despertador de pilha fraca, é que consegue despertar. Ela levanta e vai direto ao espelho e nunca nem se perguntou a razão de tal ritual. Talvez se perdesse durante o sono, talvez sentisse falta de si mesma ou acordasse deveras desnorteada precisando retomar a sua imagem. Talvez tudo isso junto. Maquiagem borrada e cama vazia. A única coisa boa em acordar é que essa é a hora em que, por costume, todos desjejuam com a sua bebida favorita – como se ela já não tivesse, por costume, o vício em café a qualquer hora do dia –. Ela se perde com tamanha facilidade, desde pequena que é chamada a atenção: “Está ouvindo o que eu falo? Você ta sempre no mundo da lua. Mas que lerda!” pra falar a verdade, ela tinha certa capacidade de se acostumar a coisas que, naturalmente, seriam irritantes e, por isso, nada do que sua mãe um dia falou surtiu algum efeito sobre qualquer coisa nela. Corta o pão, pega a manteiga, e tinha alguma coisa no café, ou alguma coisa que olhava pela janela que a fez lembrar-se dele. Ou foi só mesmo a insistência em recordar a noite passada – acha tão estranha a sensação de não se lembrar de quase nada, não pode ser! –. 
Jurava que chegou a sentir uma leve alteração nas batidas, até então, quase imperceptíveis do seu coração, ao ver a imagem daqueles olhos voltando a sua memória. Eram tão vivos e presentes que ela quase podia voltar à cena; ela quase podia vê-los ali, parados em frente à janela, bloqueando a passagem de luz, como se a própria luz que viesse deles fosse suficiente. Relembrou a voz dele e os flashes vinham mais rápidos do que o que ela podia controlar. “Você não quer cuidar?”, sorriu e se seguiu o som do alarme que indicava seu atraso, antes que pudesse se dar conta do quão ridícula parecia em pé ao lado da pia sorrindo ao pensar em como havia lhe agradado a voz do tal desconhecido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário