quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Fleurs et la mort

Abriu os olhos vagarosamente e lhe ardeu a luz que vinha das várias lâmpadas por todos os lados. No teto. Não se lembrava de muito antes disso. Era como se alguém fizesse força contrária todas as vezes em que ela tentava levantar os olhos muito alto, no esforço de reconhecer aquele teto nada familiar. Mas o assombro de se perceber em local desconhecido a fez resistir ao incômodo de tantos estímulos palpitando o astigmatismo. Sentia seus pés gelados mesmo sem sentir o frio. Seus pés, nariz e dedos das mãos sempre estavam gelados. Uma leve força e percebeu que o seu pescoço doía, entendeu que seria assim com qualquer outra parte do corpo que tentasse mover. Enxergou nublado o roxo em volta das veias do braço onde a agulha deitava imóvel, canalizando o soro até dentro dela. Estranhou o machucado, já que os médicos nunca tiveram problemas em encontrar sua veia. Olhou mais além e descobriu o jeans antigo que, provavelmente, alguém teria posto nela, já que não se recordava de coisa alguma. Viu os pés nus e imaginou-os mais gelados do que o normal, por isso. Passada a tontura inicial, olhou em volta do quarto. Tinha um vaso de flores amarelas lá longe, perto da porta, em cima de um dos balcões ou sabe-se lá o nome daquilo. Flores, flores. Só agora, percebendo o contraste do amarelo, lhe ocorreu o efeito enjoativo que a cor do ambiente causava-a. Tudo muito branco e toda aquela claridade já começava a lhe trazer pontadas mais fortes. Flores lembravam-na alguma coisa... De repente, ela viu as flores, só que vermelhas, na escrivaninha do apartamento. Recordou-se das letras emboladas na carta, no papel; mas não era seu caderno de sempre, era uma folha solta. Ela escrevia enquanto as flores se misturavam ao texto. De repente o barulho e as flores se espalhavam pelo chão, o jarro quebrando e as palavras jorrando. Pílulas e comprimidos e porque ela tinha feito aquilo? Não se lembra do impulso antes disso, que deve ter sido dos fortes pra convencê-la assim; se lembra apenas a partir do momento em que já havia se arrependido; do momento em que a dor a dilacerou e já era tarde. Porque ela tinha feito aquilo? Quem havia levado-a àquele lugar? Os pensamentos se dividiam entre as dúvidas, a lembrança e a dor de cabeça. Ou seria tudo somente efeito da medicação? E qual medicação: a de melhora ou primeira com outro objetivo? A enxaqueca era mais intensamente sentida a cada pulsar, enquanto seus pensamentos iam sendo interrompidos por vozes e passos vindos do corredor, que ficavam ambos mais fortes na medida em que se aproximavam da porta branca do quarto branco. O girar da maçaneta funcionou como um click, fazendo-a despertar para, quem sabe, o fim do mistério. Viu uma mulher de branco entrando pela porta  provavelmente a enfermeira – acompanhada de um rapaz alto de olhos castanhos, fundos e penetrantes, que se fixaram prontamente nela. A enfermeira balbuciou umas palavras rápidas de acomodação ao rapaz, deixando o quarto. Do lado de fora, pelo vidro da janela, conseguia ver uma mulher de meia idade, através de umas brechas da cortina branca de plástico. Tinha uma feição preocupada e avermelhada, como de quem tivesse chorado recentemente. O rapaz se aproximou da cama receoso, segurando a mão dela, levando-a até ele, aconchegando-a, e só assim ela se deu conta de como seus reflexos e sua sensibilidade estavam comprometidos. Os círculos castanhos continuavam a olhá-la fixamente e ela poderia até arriscar que percebia certa expressão de afago, se não estivesse tão dopada. Agora o rapaz desconhecido, e ao mesmo tempo familiar, parecia mexer os lábios de forma dócil e pacífica, com o mesmo olhar carinhoso, intacto, imóvel. Só parecia, sem certeza, vez que ela só conseguia captar umas míseras palavras soltas que ele a direcionava, e ainda assim, com um pouco de eco flutuando até atingir as paredes pálidas e voltar até ela. Ou seria o eco dentro da sua cabeça, apenas? Ele falava algo sobre tudo ficar bem – palavras que combinavam com o seu olhar do início, que agora parecia um tanto afetado – e a julgar pelo seu tom de voz, ela percebeu a forma como a fala dele parecia íntima. Havia uma sensação estranha, como se alguém contasse uma história ocultando fatos, como se faltasse um pedaço de alguma coisa. Ele citou uma carta em sua fala e logo em seguida vieram questionamentos aos quais ela não conseguia sequer acompanhar mentalmente. As perguntas não tinham tom de fúria, nem de ameaça, muito menos de julgamento, o que fez com que ela tivesse certeza agora de que deveria se lembrar daquele olhar e daquele tom protetor naquela voz; mas, ainda assim, não fazia idéia alguma. Enquanto o rapaz puxava do bolso de trás da calça um pedaço amassado de papel, sua cabeça fazia zigue-zague na medida em que entendia cada vez menos tal situação. Ele passou o olho por cima daquelas palavras manchadas através do papel, como dava para notar, lendo por um tempo em pensamento. “Você não se lembra mesmo de nada?” Ele perguntou, com aquele mesmo olhar penetrante e íntimo e agora um tanto dolorido. Não esperou por resposta, como se pudesse prever alguma, voltando os olhos para o pedaço de papel que, agora seco, não negava que havia se umedecido há pouco tempo atrás. Se pôs a ler em voz alta com certo esforço, como que catando as poucas palavras daquela longa carta que não haviam se embolado acidentalmente por entre a tinta da caneta misturada à água do jarro de flores; a garota se esforça tentando afastar o efeito sonífero da medicação para que pudesse entender bem o que agora poderia vir a ser, novamente, quem sabe, o fim do mistério: “Não, eu não quero mesmo me matar. Com a maioria dos suicidas é assim: comigo não seria diferente. Eu quero mesmo é pôr um fim à essa dor e às vozes na minha cabeça.” [...]linhas borradas. “Vou fazer isso, está decidido. Vou fazer mais pela dúvida de fazê-lo ou não do que por vontade pulsando forte por dentro.” Olhou subitamente para ela, sem demorar o olhar, como se tudo doesse demais para um contato visual agora, para procura de verdades; ou como pra checar se ela o acompanhava. E sim, ela o fazia. “... E no geral, é mesmo assim: ninguém tem vontade de morrer. As pessoas têm é vontade de vida, de mudança, de melhora, de amor. No meu caso, de um pouco de atenção. De uma pitada de drama na minha vida murcha e cotidiana. De encontro comigo mesma, seja lá o que isso signifique. Mas não quero que pensem que faço isso para chamar a atenção de ningué...” [...] “Acontece que quero gritar e, impedida por certas mordaças invisíveis ao olho humano, fazer mal a mim mesma é a maneira que encontro de tornar externa a forma como estou por dentro. Quem sabe, talvez assim, alguém me ouça.” [...]

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