sábado, 21 de junho de 2014

A Borboleta Amarela

Havia acabado de deixar um consultório médico, o que há tempos vinha se tornando um de meus passatempos prediletos, considerando o prazer e alívio por mim experimentados ao fim de cada consulta. Quaisquer anormalidades cardíacas haviam sido descartadas, a despeito das brutas pontadas do lado esquerdo que acometiam-me semanalmente, e das tonturas e da falta de ar. À espera dos ônibus, uma multidão se aglomerava, e ao sentar no banco urbano imundo que por mim esperava, percebi-a ao lado dos meus pés, se debatendo sobre o chão de cimento que era seco e já antigo, mas que causava impressão de ser molhado e lamacento, tamanho o esforço que a bela borboleta amarela depositava ao tentar movimentar suas asas ou avançar rastejando de lugar – eu não estava tão certa. Parecia tão machucada e em sofrimento que meu primeiro pensamento foi o de que havia sido pisoteada minutos antes de minha chegada. Tentei envolvê-la posicionando meus pés ao seu redor para que nenhum passante distraído pudesse causá-la ainda mais dor. E eram todos eles distraídos, enquanto eu a observava de cima, tão próxima a mim e somente a mim, sentindo minha impotência diante do que pudesse vir a ser um fim, sentindo a solidão daquela vida que, imperceptivelmente se debatia sobre um chão sujo, sob um sol que suas asas ressecava, em uma manhã que era para a espécie humana tão insignificante quanto a natureza em si. Em desespero, dividia a minha atenção entre a espera da chegada do ônibus que a mim me serviria e a observação dos movimentos da borboleta, na esperança de uma recuperação. Senti vontade de pegá-la em meu colo, em meus dedos, pois era do que ela parecia precisar. Tive a ideia absurda de levá-la para minha casa, para cuidá-la ou para simplesmente apreciá-la por alguns minutos mais, se ao menos eu dispusesse de algum recipiente em que pudesse transportá-la sem que viesse a causá-la mais danos do que aqueles aos quais ela já havia sido acometida naquela desagradável manhã. Tendo falhado em encontrar qualquer objeto que servisse para meus objetivos e um pouco paralisada em agonia, pensei em transportá-la para o canteiro central do outro lado da rua, dessa forma, pelo menos, ela estaria em habitat natural e sua recuperação poderia acontecer de fato – ou eu queria pensar assim. Mas não fui. O que diriam aqueles que me vissem prostrada no meio da rua, tentando capturar uma borboleta semi-morta, tentando atravessar uma avenida em meio a buzinas de tantos carros barulhentos e pessoas de pedra, apenas para depositá-la em um lugar onde havia verde? E se perdesse o ônibus? E se de nada valesse?
Nesse momento, todos os seus movimentos cessaram, o sol continuava a maltratá-la sem piedade, enquanto o vento se aliava ao sol contra uma natureza de outra espécie, da espécie animal, fazendo pender para o lado as belas asas amarelas com manchas alaranjadas da borboleta enfraquecida, como se por inveja, se por despeito de sua beleza. E eu pensei então que, enfim, o fim havia chegado. E olhei para os passantes na rua, e realmente os vi, os enxerguei porque desejava que alguém percebesse junto a mim o que se passava, e que, dessa forma, eu não me sentisse solitária e unicamente responsável pela vida que tinha acabado de partir, ali, em meus pés. Se ao menos tivesse sido diagnosticado em meu coração arritmias, ou quaisquer problemas de funcionamento, talvez eu não houvesse me compadecido da beleza daquela borboleta. Talvez eu não tivesse sequer a notado. Se em mim não houvesse um coração "funcionando perfeitamente bem, em plenos vinte anos de idade" como disse o sério doutor que a mim me parecia formidavelmente sincero.
Como era bela! E como me fez pensar na inconveniente fragilidade que cercam todas as coisas assim tão belas. E me fez pensar em quantas borboletas tão belas quanto aquela morrem todos os dias, e em quantas borboletas eu havia levianamente, distraidamente pisoteado em minhas rotineiras idas e vindas, ou em quantas borboletas agonizantes havia ignorado enquanto em me encontrava na posição de simples passante, absorta em frívolos pensamentos cotidianos, ou de simples esperadora de ônibus, em vez de observadora e aliada das coisas belas e tristes e frágeis e pequenas. 
Eu precisava confidenciar a alguém o que havia se passado entre mim e a borboleta, numa história que terminaria no trágico final da morte fatal após quinze longos minutos de interminável agonia, dúvida, apreciação e amor. Enquanto eu lamentava o abandono de um cadáver tão belo e colorido, passei a ponta dos meus dedos dos pés cuidadosamente em seu corpo leve e perturbado pelo vento, vencido pelo luta de movimentos exaustivos, quando ela, bela e pequenina, em resposta ao meu toque, ergueu sutilmente as perninhas dianteiras, deixando-me saber que nem tudo estava perdido, que havia ali ainda vida, e lutava. Não sabia se deveria me sentir feliz a respeito dessa nova informação, afinal, eu ainda não tinha meios de levá-la comigo, e nada me garantia que, deixando-a ali, não seria novamente pisoteada, ou simplesmente arrastada pelo vento para longe, de modo a sofrer de uma dor extrema que dessa vez não poderia mais suportar. E não havia modo de absorver aquela beleza tão bem desenhada e eternizá-la em uma fotografia, ou em qualquer coisa que o valha, ou de deixá-la saber que eu sabia como se sentia, exatamente como se sentia, e que eu também já havia experimentado daquela solidão fria. Foi quando o ônibus chegou e tive de saltar e então partir, mas não sem antes olhar para trás enquanto me afastava, avistando um ponto amarelo ínfimo em meio a borrões gigantescos, deitada e abandonada no oco e solitário vazio de sua delicada existência. 
"Desculpe-me, borboleta...", pensei. "Em redenção, escreverei sobre você."
Como se isso nos valesse de alguma coisa.

2 comentários:

  1. Muito bonito texto.

    Algumas borboletas, duas, já caíram semi-mortas no meu quintal e eu tive que apenas esperar que morressem. Eram laranja com preto, as duas. Guardei-as em duas caixas de fósforo, forradas com algodão por dentro e com papel de presente por fora. Queria preservá-las instintivamente. Abri uma caixa bastante tempo depois, ela ainda estava lá, mas me pareceu mais morta do que quando a peguei. Desbotada, seca, como se tivesse perdido seu aspecto de ser-borboleta. Ela não era mais borboleta, de fato. Era um recorte de papel numa caixa de fósforo. A morte sempre vai ser morte, na calçada de um ponto de ônibus, em meio à grama do canteiro, dentro duma caixa de fósforo...

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  2. Me sinto assim sobre diversas pequenas criaturas viventes. Algumas não tão pequenas quanto uma borboleta ou uma lagartinha qualquer. As vezes um cachorro moribundo ou um gato vadio. E olho exatamente com esse seu olhar para as "pessoas de pedra" que transitam sem sequer notar a presença de coisa tão doce e pequena e solitária e frágil. E esses pequenos seres sempre capturam minha atenção. Vai ver nós enxergamos o mundo com lentes diferenciadas.

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